Malaika
A força de um anjo no sertão paraibano
Por Clarissa Kuschnir
Assistido presencialmente na Mostra de Cinema de São Paulo 2025
Como é bom ver que o cinema brasileiro tem se reinventando com alguns cineastas autorais com histórias e personagens envolventes, singulares e outsiders (aqueles que se sentem de fora de um determinado grupo) como tem feito o multiartista paraibano André Morais. Em seu segundo longa de ficção (o primeiro foi “Rebento“) “Malaika”, o diretor que também assina como roteirista, debruça-se na história de um dia de uma adolescente albina (a ótima Vitória Bianco) filha de uma mulher negra (Norma Góes), que vive no sertão nordestino. Nada é fácil para Malaika, que além de sofrer por sua condição diferenciada entre seus colegas já logo no primeiro dia de aula, ainda tem que lidar com as mudanças hormonais, sua sexualidade (que ao longo do filme entendemos todo seu processo), e as questões de relacionamento com ela mesma, típicas da própria idade.
E tudo isso se junta a uma comunidade onde os ricos e brancos continuam dominando. O poder, a religião (na escola católica onde Malaika começa a estudar), tudo é tão bem-sinalizado em meio a esta obra atemporal, porém muito atual, que utiliza de poucas falas, mas que pelas longas sequencias e atitudes de cada um de seus personagens, já falam por si só. Ou seja, a crítica está aí para quem quiser entender, mas de maneira muito sutil e delicada. Em uma das cenas inclusive, Morais opta por não mostrar nitidamente o rosto da professora interpretada por Ingrid Trigueiro, que na vida real além de atuar, tem como um dos seus ofícios, a pedagogia. Só se ouve sua voz e sua altivez. Para muitos a obra pode soar em ritmo lento, mas o filme para se fazer entender, precisa deste tempo.
A protagonista vai se apresentando aos poucos no desenrolar do filme, e temos a chance de acompanhar sua história, seus medos, suas angústias, suas solidão e seu relacionamento com sua mãe, que trabalha como empregada doméstica, na casa de uma família abastada. Tudo isso em meio as mais belas sequencias fotográficas da vida do interior, dirigidas por João Carlos Beltrão, um dos fotógrafos mais prestigiados a requisitados do cinema paraibano contemporâneo. Apesar da forte presença da protagonista, talvez a mais marcante de todas ali da trama é Isabel, mãe de Malaika, uma mulher sofrida que trabalha dia e noite, mas dotada de uma força sobrenatural e que faz de tudo para criar e proteger sua filha do mal, principalmente da família para quem trabalha. Interpretada brilhantemente por Norma Goés, uma mãe que quando aparece em cena representa para mim com maestria, todas as mães universais. Entre outras coisas do filme o que me chamou muito a atenção foi a opção do diretor por filmar muito os pés dos personagens. Isso segundo o próprio André, os pés ali estão representando a base, a raiz, o princípio de tudo.
E a raiz de “Malaika” vem da força da terra por onde ela corre, de seus ancestrais, de sua mãe e até dos lobos que a perseguem e a observam durante todo o filme. Ou seja, tudo em Malaika tem uma razão de ser, sem deixar de ter um pé no cinema fantástico, mesmo que possa parecer um pouco complexo a princípio. E penso que isso é positivo, para que cada espectador tire suas próprias conclusões sobre a história. Mas como nenhuma história vem do nada, segundo André, a inspiração veio depois que ele viu uma série de fotografias de pessoas albinas feitas pelo fotografo de arte mineiro Gustavo Lacerda, em uma de suas exposições, realizadas em São Paulo. Com um elenco e equipe praticamente toda da Paraíba, o longa foi filmado na cidade de Catolé do Rocha, sertão paraibano e teve sua estreia mundial no prestigiado Festival Latino-Americano de Biarritz, na França, ocorrido em setembro.
No Brasil estreou na 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo na categoria Competição Novos diretores. inclusive em sua primeira exibição no Cinesesc, teve a presença de pessoas albinas na plateia, o que por si só, já mostra o potencial do filme. No circuito comercial o longa deve chegar no próximo ano, ou depois de passada a temporada de festivais e possíveis mostras nacionais e internacionais.


