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Lenita

A busca pela beleza: Lenita por ela mesma

Por Paula Hong

Mostra de São Paulo 2023

Lenita

A composição do cenário cultural brasileiro abriga uma ampla gama de artistas — alguns mais conhecidos, outros menos. De qualquer modo, há uma certa curiosidade insaciável pelos processos das realizações artísticas para entender o impacto que elas nos deixam, sobretudo num momento de interação direta com o público através das redes sociais. Nesse sentido, o diretor Dácio Pinheiro aterrissa no que há por trás das produções artísticas de Lenita Perroy, montando as peças do quebra-cabeça que dão forma à figura da fotógrafa, cineasta e criadora de cavalos, Lenita. 

Os caminhos que nos fazem entrar em contato com um artista são, muitas vezes, inusitados. O caso de Dácio não é diferente. O pontapé da sua jornada até Lenita se dá através de cartas de tarot, cujas ilustrações são fotografias de mulheres. Nelas, o diretor enxerga uma autoria, e é em busca dela que nasce o documentário “Lenita”.

Em consonância com a vida de Lenita, o filme dá a impressão de ser composto por duas obras diferentes. Isso porque aprendemos que a construção da figura artística de Lenita, feita através de entrevistas e, por consequência, das memórias de quem conviveu com ela, difere da Lenita que mais tarde se apresenta. No entanto, o grande projeto artístico de sua vida iniciado na fotografia e mais tarde transposto para a criação de cavalos — por mais estranho que isso seja — permanece: a busca pela beleza.  

A estrutura do documentário alterna entre entrevistas e trechos dos filmes que assinou como diretora de arte ou diretora, dentre eles “A Super Fêmea”, com Vera Fischer, “Noiva da Noite”, com Rossana Ghessa e o “Mestiça, a Escrava Indomável”, com Sônia Braga, recentemente recuperado pela Cinemateca Brasileira. As experimentações de Lenita se iniciam, contudo, na fotografia — sobretudo voltada para a moda e publicidade. As entrevistas deixam claro que ela tinha dotes criativos e energia para montar o cenário, escolher, vestir, maquiar e dirigir as modelos. 

Suas composições fotográficas privilegiam mulheres. Sua criatividade é considerada como à frente do tempo, e também em concordância com a trupe de artistas que estavam inseridos na erupção de rupturas no meio cultural e político, como é o caso do tropicalismo. Foi Lenita quem tirou a famosa foto do álbum Tropicália, um grande marco dentro da cena musical brasileira. E também do disco psicodélico do cantor Ronnie, do Zimbo Trio, Célia e Eduardo Araújo.

Um dos aspectos mais marcantes dos processos artísticos de Lenita está na rede de contribuições nascidas da efervescência de criação que ela causava nas pessoas, sendo as cartas de tarot, cujas fotográficas carregam um teor erótico, uma das suas criações que mais desafiaram a moral das mulheres de seu círculo à época. O efeito do desafio está eternizado nas cartas e nas memórias de quem presenciou ebulições criativas desse ser colocado pelos entrevistados como místico, apelativo, sensível, aberto ao e a favor do diferente. 

À essa altura do filme “Lenita”, a construção trabalha em cima da impressão de que estão falando sobre uma pessoa que faleceu. No entanto, somos apresentados a um certo tipo de plot twist quando aprendemos que Lenita está viva. A sua ausência se faz no meio artístico, mas não no mundo. Dela ouvimos o motivo pelo qual não continuou a carreira dentro do cinema: as condições de realizações fílmicas eram muito difíceis para mulheres. Haviam muitas barreiras, sobretudo no circuito de exibição de suas obras. Apesar do momento político propício para isso, elas não tiveram a recepção ou o reconhecimento que hoje vem tardio. 

Após a separação com o marido, Olivier Perroy, e o cinema, Lenita direciona  suas energias para outras ocupações. Meio isolada, ela dedica-se à criação de cavalos e, mais especificamente, de cavalos árabes — o grande da raça, Ali Jamaal. Neste nicho, Lenita foi uma das precursoras da reprodução de uma das raças mais cobiçadas nacional e internacionalmente. A dedicação pelo amor ao animal também se justifica pelo almejo de reproduzir o cavalo ideal. Como sempre, pela busca da beleza. 

As convenções de linguagem do documentário “Lenita” não são inovadoras. Elas são utilizadas de modo que dê conta de abarcar a história da Lenita Perroy, um nome que teve sua importância no cenário cultural brasileiro, sobretudo nas décadas de 60 e 70. Mesmo com a breve passagem no meio, foi uma das grandes contribuintes para a quebra de planificação das realizações artísticas quando deu forma à sua criatividade.

No filme, fica claro que há a Lenita fotógrafa/cineasta e a Lenita criadora de cavalos, mas que sempre manteve o espírito criativo e artístico em movimento. Essa distinção da construção da imagem dela feita pelos outros, do que eles lembram dela, para depois mostrá-la falando conosco, é uma das potencialidades do filme, pois nos revela o seu impacto no meio artístico e também no nicho ao qual se dedicou o resto da vida, como uma espécie de aquela é a Lenita de quem lembram, e agora esta é a Lenita por ela mesma. De qualquer modo, somos apresentados a uma grande figura.

3 Nota do Crítico 5 1

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