Lembra
O Cotidiano na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica
Por Michel Araujo
Se Walter Benjamin fala de um hic et nunc das obras de arte – seu “aqui e agora” – como a materialidade e presença constitutivos de sua “aura”, em oposição à potência reprodutiva da fotografia e do cinema, que dizer do repetido esforço de emular esse próprio “aqui e agora” através da constante atualização dos fatos cotidianos nas redes sociais?
Se a visita a um álbum de fotografias é uma espécie de passeio pelo passado, perfilar o feed de notícias ou a timeline de um Facebook ou Instagram é um passeio pelo presente, por todas as notícias, fotos, status e comentários referentes ao momento do “agora” – um “agora”, é claro, por demais dilatado. Isso diz respeito à dimensão temporal, mas e a espacial? Pois bem, a interação remota com outros usuários em tempo real produz um falso “estar aqui”; um acesso direto, ativo e ao vivo a outras pessoas, na tentativa de anular as distâncias geográficas.
Em “Lembra” (2018), curta-metragem de Leonardo Martinelli, acompanhamos o dia-a-dia de uma jovem carioca de classe média através desse fluxo errático que é o stream de suas redes sociais, recortado por três quadros dentro do quadro, cada qual com a interface de uma tela de celular. A simultaneidade e as eventuais defasagens entre esses quadros – dentro dos quais, por sua vez, temos inúmeros planos contíguos – se afasta radicalmente de uma linguagem audiovisual da qual a teoria cinematográfica “planocêntrica” poderia dar conta; diz respeito a própria natureza da nuvem digital de alta velocidade que acessamos diariamente, que mesmo sem repararmos, subverte a lógica de diversas maneiras.
Ao longo de “Lembra”, vemos a personagem confrontada com a realidade política que a cerca: discursos do então presidente interino Michel Temer, bem como os abusos e truculência cometidos pela polícia militar durante a Intervenção Federal no Rio de Janeiro. Surge então, partindo da ingenuidade da personagem, bem como da efemeridade de suas fotos, vídeos e stories, o apontamento de uma problemática com esse olhar célere que pouco se aprofunda nas particularidades dos fatos – quer pessoais e corriqueiros, quer políticos e massivos.
Na atual pulsão escópica provocada por essas multi-telas, muito é capaz de se ver, mas nem tanto é possível se apreender visto o imediatismo das imagens que bombardeiam os usuários digitais. Isso se reflete em peso na personagem – corroborada pela dinâmica das telas –, a qual professa ideias superficiais acerca de seus arredores, numa visão pouco expansiva e limitada ao seu pequeno nicho social.
O momento que a personagem relata com enorme dramaticidade a prisão de um vendedor ambulante que trabalhava na sua rua afirmando categoricamente que “isso é a Intervenção Federal no Rio de Janeiro” mostra o quão fechada em sua classe social ela está, considerando que as consequências efetivas das operações eram de fato muito mais brutais, com diversas mortes ocorrendo diariamente em comunidades do Rio. E ainda como que com um toque de humor mordaz surge na tela a mensagem de um contato com o nome “Marcus (tinder)” falando que é muito ruim que ela tenha que passar por isso, e que eles deveriam sair para tomar uma cerveja e esquecer isso.
Essa experimentação com o formato dispositivo – que delega a organização do espaço da cena muito mais aos atores e ao improviso, apesar da montagem acelerada –, somado ao excesso da Ecranosfera cunhada por Lipovetsky é um esgarçamento da mise en scène cinematográfica, visto que a sucessão de imagens dentro do quadro total – composto por três quadros parciais – é quase epilética, tal qual o fluxo digital que apreendemos cotidianamente. Se a organização do ecrã em “Lembra” (2018) parece por demais caótica, podemos remeter isso apenas e tão somente a organização da vida virtual que nos passa tão despercebida.