La Place d’une Autre
A reconciliação das identidades
Por Vitor Velloso
Durante o Festival de Locarno 2021
“La Place d’une Autre” de Aurélia Georges, até o momento, é o filme mais sóbrio da Concorso Internazionale e mostra que o lobby francês não falha. A trama acompanha Nelie, que rouba a identidade de uma mulher morta, e se utiliza dos benefícios da burguesia para trabalhar para a aristocracia. Aqui, existe um princípio de refrega diante das ideologias que regem os momentos iniciais da Primeira Guerra Mundial: a compreensão de que os adversários são seres humanos, a piedade cristã, o horror aos socialistas e o trabalho que dignifica. A gente sabe onde isso vai dar.
De toda forma, a proposta da obra é seguir as consequências das atitudes da protagonista, que pela primeira vez na vida, não está sendo humilhada. Ou é o que ela acredita. A construção é lenta sem ser tediosa, consegue criar um bom ritmo entre o princípio do conflito bélico até a função de leitora da mulher rica. O contraste de sua vida passada com a atual, é um dado que retorna durante alguns diálogos, onde as mentiras vão se amontoando e as cicatrizes vão sendo curadas, como a ausência materna de Nelie. “La Place d’une Autre” é uma reconciliação de classe estilosa, como um jogo das relações de poder que se uniformizam na apresentação diante da alta sociedade. “Você é uma de nós”, diz a mulher rica. Está claro que conforme a projeção avança, as diferenças se tornam cada vez mais nítidas e os fantasmas do passado tornam a atormentar.
Não há grandes conflitos desenvolvidos, pelo contrário, a afeição ganha corpo e a própria Guerra passa a se tornar um assunto secundário, distante, onde as aparências importam mais, a realidade é supérflua. O filme é construído a partir do drama clássico, não há grandes reviravoltas e as que estão presentes já eram esperadas, a possível expectativa é “como?”. Nada empolga no filme, a ideia clássica de um drama redondo e fechado acaba funcionando para um estoicismo mais rigoroso. A linguagem procura belas imagens, se distanciando dos “escândalos” de Rose e se aproximando do chá. Apesar da montagem conseguir alguns momentos, como o diálogo com o chefe de polícia (onde fica claro que o verdadeiro poder da lei está na palavra da aristocrata), as coisas não se distanciam muito da padronagem francesa mais comercial. Enquanto o filme cria um caráter esteta, seguindo as personagens pelos belos campos, colocando o “guarda” à contraluz e utilizando os espaços do casarão para retratar essa riqueza, a sensação é de estarmos no mesmo cenário de sempre com uma trama diferente.
A narrativa não fica desinteressante na maior parte do tempo e vai articulando um sentimento de culpa pelo sofrimento de outra mulher que passa a dimensionar uma tragédia. Por essa razão, quanto mais o drama se desenvolve, mais o espectador se interessa por uma história que possui desdobramentos em diferentes níveis sociais e classes. Porém, “La Place d’une Autre” se faz de inocente quanto à reconciliação de classe que estrutura até o fim da projeção. Longe de um revisionismo barato, a subjetividade dá lugar para essas recorrências serem traduzidas a partir de sua suposta inocência. É a explicitação do que Scorsese definiu como “contrabando de ideias”. A aristocracia tomando a representação materna na vida de Nelie é a síntese que torna as coisas mais agudas.
Ainda que o filme funcione como um drama clássico direto ao ponto e com uma resolução que se arrasta até às últimas consequências, com a antítese climática comum ao cinema francês, poucas coisas são relevantes quando tomamos o contexto do que a Concorso Internazionale veio apresentando até o momento. Uma sobriedade esquemática, consciente de seus louvores e que figura através do lobby francês mirando alguma distribuição internacional ampla. Provavelmente chegará no Brasil como uma daquelas sensações francesas dos Estações Net da Zona Sul, mas possui uma índole duvidosa quando a consciência desses contrastes se torna cada vez menor e as aproximações adquirem o caráter familiar.