Kompromat – O Dossiê Russo
Mais realista do que o rei
Por João Lanari Bo
Festival Varilux de Cinema Francês 2022
“Kompromat – O Dossiê Russo”, película francesa lançada nos cinemas, é o tipo de filme que tem tudo a lucrar com a conjuntura, no caso a invasão russa e a guerra na Ucrânia. O diretor mesmo, Jérôme Salle, reconheceu: Tenho a pretensão de que o filme transcreve relativamente bem a ideologia do governo russo. Digo a mim mesmo que se o público tivesse visto o filme antes da declaração de guerra, sem dúvida teria achado exagerado. Mas este evento, a guerra da Ucrânia, torna tudo mais crível! Com efeito, os acontecimentos que se sucederam nos últimos meses inevitavelmente geraram uma curiosidade extra na audiência sobre o que se passa, afinal, nesse gigantesco e misterioso país, a Rússia. O maior país do mundo: foi Vaclav Havel, dramaturgo e presidente da República Checa depois da queda do muro de Berlim, quem disse: A Rússia é tão grande que a História nunca soube exatamente onde ela começa e onde termina. Diante de uma tal magnitude, qualquer reducionismo geográfico ou político corre o risco de esvaziar a discussão – sim, o ímpeto imperialista russo está entranhado de alguma forma na psique e nas ações de Vladimir Putin, é óbvio que sua intenção é transformar a Ucrânia em um estado vassalo e integrante da zona de influência comandada por Moscou, a exemplo do que ocorria no império czarista, quando era parte da Rússia, e no regime soviético, quando estava integrada à URSS. Mas também é óbvio que a formidável tradição cultural, artística e científica russa não se esgota na psique e nas ações de Putin, à revelia do próprio Putin – uma das possíveis chaves para situar essa tragédia é pensar o mandatário do Kremlin como uma espécie de personagem trágico saído dos livros de Dostoievski, carregado de dramas e angústias, impetuoso e pecador, enlouquecido e irracional – no limite, suicida. A vibração que o personagem Putin irradia é tão intensa que tendemos a associar seu nome, voluntariamente ou não, à Rússia como um todo: uma metonímia mental, Putin é a Rússia, e a Rússia é Putin. A Rússia, claro, é muito mais rica e complexa do que seu Presidente e seus objetivos bélicos.
Este o pano de fundo de “Kompromat: O Dossiê Russo”. Kompromat: termo que designa evidências e provas falsas, mas comprometedores, usados pelo serviço secreto russo – a temível FSB, herdeira da KGB – para prejudicar políticos, jornalistas, empresários ou qualquer pessoa considerada um perigo para o Estado. O Estado que é, não custa lembrar, constituído por pessoas, subjetividades. Mathieu Roussel, expatriado francês que vive nos confins da Sibéria com sua família, é a bola da vez. Apanhado numa espiral infernal, seu calvário começou quando resolveu programar um balé onde dois homens se beijam, para inaugurar sala de espetáculos da Aliança Francesa que dirigia. O mecenas que ajudou na construção da sala, empedernido e moralista oligarca local, não gostou: após uma prisão violenta, Mathieu é jogado em uma cela sórdida, sem entender o que está acontecendo, acusado de possuir imagens de pornografia infantil, além de tocar sensualmente sua filha. O advogado que o defende sussurra em seu ouvido: você vai pegar 10 a 15 anos, aqui na Sibéria, graças ao kompromat de falsas acusações. A embaixada francesa, hélas, o abandona. Até a esposa, segundo o advogado, testemunhou contra – Mathieu Roussel só encontra ajuda e conforto na ajuda clandestina prestada por uma russa corajosa e bonita, casada com veterano mutilado de guerra. As peripécias se sucedem e a saída é mesmo fugir, para a Mongólia ou países bálticos. A caçada humana e a respectiva adrenalina que se seguem constituem o enredo principal da trama.
Nos letreiros de “Kompromat: O Dossiê Russo”, lê-se: esse filme e personagens são vagamente baseados em eventos reais. Trata-se da história real de Yoann Barbereau, que era da Aliança Francesa em Irkoutsk, na Sibéria, e efetivamente passou por poucas e boas, condenado a 15 anos e fugitivo pelo menos duas vezes. É no livro que Yoann escreveu, em que conta tudo isso, que Jérôme Salle se inspirou: mas, por alguma razão, os dois não se entenderam – Yoann Barbereau não é sequer mencionado nos créditos. Tudo isso está longe de mim, diabolicamente longe do livro, não estou falando apenas de detalhes ou alguns fatos verificáveis, disse o escritor quando viu o resultado na tela. Sua conclusão é crítica: é difícil falar contra o discurso tolo viril, contra suas trincheiras, suas poderosas ficções feitas de “campo ocidental” e “Rússia Eterna”. A Rússia, enfim, é muito mais densa e profunda do que supõem os clichês estereotipados do discurso fílmico do diretor francês. Talvez a fita passasse despercebida do grande público se não fosse o contexto atual da guerra – hoje, graças ao Presidente Putin, tornou-se mais realista do que o rei.