Jogo Justo
Crazy Play
Por João Lanari Bo
Festival de Sundance 2023
“Jogo Justo”, da estreante Chloe Domont, passou no Festival de Sundance de 2023 e foi direto para o tubarão dos streaming, Netflix: lançado em seletas salas de cinema em setembro, logo em seguida, em outubro, já estava disponível para consumo caseiro. É um caso raro de filme da safra Sundance que vinga no mundo real e implacável do mercado audiovisual, com produção relativamente pequena, e roteiro (também de Chloe) focado em uma relação intensa e tempestuosa. O igualmente implacável IMDb classifica a fita em três categorias: drama, mistério e suspense. É tudo isso, e mais: sexo, dinheiro, traição corporativa e muitas outras coisas que são, ao fim e ao cabo, divertidas de assistir, para gáudio das audiências.
Estamos, para começar, no pináculo do capitalismo: Luke (Alden Ehrenreich) e Emily (Phoebe Dynevor) são dois analistas da financeira “One Crest Capital”, situada, é claro, em Nova York – trata-se de um hedge fund, ou seja, empresas capitalizadas com investidores que se juntam fornecendo grandes somas de dinheiro, para investir nas mais variadas opções. Ao contrário dos investimentos tradicionais – Bolsa, renda fixa, fundo de ações – os hedge funds atacam todos os tipos de oportunidade ao mesmo tempo, com graus de risco variados (indo do muito baixo ao altíssimo), pouca ou nenhuma restrição: especulação é a palavra de ordem. A flexibilidade de investimento desses fundos tem como objetivo limitar os riscos das transações, possibilitando lucros vultosos independente da situação do mercado – quando não dá certo, é um fracasso retumbante. Estamos, portanto, em um cenário de dramatização em tempo (quase) real do capital em estado bruto, pura energia de transformação, que nem Marx foi capaz de prever. Pois Emily e Luke resolvem se apaixonar, torridamente, no meio dessa vertigem – sem falar que o código de conduta da empresa, naturalmente, proíbe relacionamentos entre funcionários.
Conhecemos Emily e Luke em um casamento de parentes – logo, já embalados pelo álcool, decidem ir ao banheiro para um sexo impetuoso. Primeira novidade de “Jogo Justo”: depois que Luke beija Emily, ela percebe sangue em sua boca e nas roupas; ela está menstruada. Parece que matamos uma galinha, diz ele. Do seu bolso, cai um pequeno objeto – um anel de noivado, que Luke oferece a Emily, ajoelhado e coberto de sangue. O pedido de casamento é imediatamente aceito. Corta para escritório da firma: Emily ouve um boato de que Luke está cotado para promoção, e não parece nem um pouco ameaçada, pelo contrário. A celebração em casa (estão morando juntos, sem o conhecimento dos colegas) vem com amor, carinho, sexo e champanhe. Entre em cena Campbell (Eddie Marsan), sempre com uma expressão enigmática de batráquio, e convoca Emily para um bar escuro às 2 da manhã. É ela, afinal, quem foi escolhida para promoção a gerente de portfólio.
O mundo vai desabar para Luke, que engole o sapo – no caso, Campbell – vagarosamente. A narrativa entra numa espiral de sentimentos contraditórios, ele não é propriamente um homem tóxico, mas se perde na fratura da autoestima. Tudo seria mais fácil se ele conseguisse controlar essa ferida narcísica, mas é demais – erros se acumulam, a “One Crest Capital” perde dinheiro com suas equivocadas projeções. No limite, sua saída é aderir a um curso online de liderança empresarial, psicologia barata para desiludidos. Emily, não é de surpreender, está a mil: dá ordens sem vacilar, ganha bônus de 575 mil dólares por uma aposta certeira, e engata um happy-hour em clube de strippers, acompanhada dos colegas – a maioria do escritório é masculina. Fatalmente, o sexo desaparece, e o álcool comparece na vida do casal.
“Jogo Justo” se compraz em alternar e mesmo opor eventuais empatias que estimulam espectadores: Emily pode ser uma boneca de porcelana, mas pode ser também desagradável e agressiva, à medida em que Luke se afunda no pântano que sua vida se tornou. Para o voyeur que segue essa descida aos infernos, tem até repulsa dos personagens, em função das manipulações que cada um faz ao outro. Ambição e desejo são a mesma coisa: mas são também forças capazes de destruição. Quando Emily grita vou salvar sua carreira se você me levar para a cama, como reagir? Rir é sempre o melhor remédio, mas, nessa altura do campeonato, as percepções são contraditórias, para dizer o mínimo.
São poucos exteriores nesse filme quente e à beira do abismo, todos austeros. Seria esse o futuro do capitalismo?