Jessica Forever
Resistência Preguiçosa
Por Jorge Cruz
É provável que boa parte do público mais criterioso identifique como os dois maiores problemas de “Jessica Forever” as apropriações refletidas no protagonismo da obra. O incômodo imediato reside no fato de que Jessica, a poderosa líder de um grupo de invisibilizados e apagados da sociedade, seja coadjuvante da história que quis colocar seu nome no título. O roteiro de Caroline Poggi e Jonathan Vinel (também diretores) derrama subtramas e se esvai em grandes explanações relacionadas a todos os homens que cercam Jessica (Aomi Muyock), dando a ela um grau quase excêntrico, como se ela fosse uma mistura de pessoa reclusa com semideusa.
Já o incômodo mediato é a subversão desnecessária que dá ao argumento do filme uma sensação de ocupação de espaço. Na distopia criada pelo roteiro, aqueles que devem ser retirados do convívio da sociedade tida como civilizada são os órfãos. Uma característica que generaliza e aproxima qualquer pessoa do risco de se tornar um pária. Só que essa tentativa de alegorizar a intolerância e a discriminação a partir da ficção científica usurpou o discurso. À exceção de Jessica, identificamos apenas homens brancos, héteros ou mal resolvidos com sua não heteronormatividade como vítimas.
Só que toda essa incongruência em “Jessica Forever” quase não é percebida dada a leseira com a qual o filme se pauta. A partir de um primeiro ato totalmente reservado para apresentar o argumento da história, pouco se aproveita na fase introdutória do longa-metragem. Momentos inspirados são bem raros. Um deles se dá quando Kevin (Eddy Suiveng), órfão resgatado pela resistência, recebe presentes dos outros integrantes do grupo. Os objetos vão de pen drives a tangerinas, passando por livros. Só que Kevin é um personagem que não diz ao que veio, serve a um propósito que se esgota rapidamente. Uma tentativa do roteiro de emular o recruta Pyle de “Nascido para Matar” (Stanley Kubrick, 1987).
Outra tentativa frustrada de “Jessica Forever” reside na substituição de uma violência mais física com algo falado. Essa verbalização da barbárie se mostra necessária pois a ação da resistência é quase imperceptível. Eles enfrentam certa indiferença por parte do sistema e não há quase conflito. Isso acaba gerando momentos constrangedores, como um personagem discursando para o nada quando consegue ocupar uma residência, por exemplo. A direção de Poggi e Vinel e a edição de Vincent Tricon, todos com pouca experiência em longas-metragens, se valem do uso de super câmera lenta em momentos pontuais e pouco comprometem o resultado – à exceção da montagem final, que beira o escárnio e do uso de um intertítulo de forma bizarra.
O que atinge de forma inapelável o filme, mesmo que ultrapassadas as questões representativas já elencadas, é a incongruência no comportamento dos personagens. Pautando-se em motivações reativas, a resistência dos órfãos não diz ao que veio. Se conforma em pilhar alguns estabelecimentos e ocupar propriedades sem nenhuma articulação pragmática. O desinteresse pela obra é quase como um reflexo dessa resistência preguiçosa liderada (?) por Jessica. A ausência de interações com pessoas de fora daquela bolha quase nos convence de que a distopia traçada pelo roteiro se baseia mais na imaginação dos membros daquele grupo do que em fatos concretos. Não vemos conexões que permitam concluir os motivos pelos quais aquelas pessoas se organizaram. Como já dito, o roteiro exige do espectador a crença de que aquela versão deve ser a comprada. Dogmatiza quase todos os seus elementos constitutivos, ao mesmo tempo em que não se importa que sua abordagem pouco convincente também seja desinteressante.
Como se a consciência acerca do problema fosse criada naquelas pessoas, mas não ter despertado tanto assim o interesse em buscar a solução. Pode ser que alguns admitam uma abordagem filosófica, que unisse a subversão da intolerância reversa com a distopia imaginativa. Nesse caso, concluiríamos que a mensagem por trás dessa revolta letárgica seria a de que todo jovem, por excelência, idealiza uma distopia parecida com aquela ali mostrada. Justificamos nossos medos e frustrações com uma mania de perseguição – o que, em muitas situações do roteiro, parece ser o que de fato ocorre.
Todavia, toda essa boa vontade em vislumbrar uma camada que justifique tantos problemas em “Jessica Forever” não se sustenta quando o ato final apela para elementos fantásticos, alterando a rota do filme para uma abordagem não convencional que carece totalmente de pertinência. Muito longe do que John Schlesinger fez em “Perdidos na Noite”, aqui se utiliza de artifícios narrativos que confundem e tornam ainda mais incongruentes a experiência de assistir ao longa-metragem.