Homem Onça
A resposta está no Walkman
Por Fabricio Duque
Durante o Festival de Gramado 2021
O personagem Don Draper, em uma cena do seriado “Mad Men”, tem uma epifania de que o mundo mudou, numa reunião da empresa que acabou de passar por uma fusão. Seu olhar mostra que o futuro talvez tenha chego rápido demais, sem preparação, e que se perdeu pelo automatização. E que não há mais como retornar aos velhos hábitos trabalhistas. Don não pode mais escolher. No livro “A Revolta de Atlas”, de Ayn Rand, também não há como fugir do trator insensível do progresso. Em “Edifício Gagarine”, o protagonista faz de tudo para impedir o avanço temporal e deixar vivo o saudosismo real do icônico prédio francês, visto que ao destruir, memórias e “vidas” desaparecerão. E no mais recente filme do realizador carioca Vinícius Reis (de “Praça Saens Peña”), “Homem Onça”, almeja-se a crítica de uma nova era pela observação do micro a fim de explanar o macro. A obra, em competição no Festival de Cinema de Gramado 2021, após representar o Brasil no Arthouse Asia Film Festival, em questão aqui ainda potencializa as consequências dessa desestruturação sócio-pessoal causada (demissão ou aposentadoria depois de “25 anos de trabalhos prestados com suor, sangue e o talismã pé de café”, em prol do “bem comum”.
“Homem Onça” talvez seja o filme que mais represente a essência patriótica. A de amar o país, fomentar nossas pesquisas e se orgulhar do ranking positivo, investindo na própria produção nacional. “Primeiro projeto de gás voltado para a sustentabilidade do Brasil”, infla-se. O longa-metragem, representado como um reflexo pelo ufanista Pedro (o ator Chico Diaz), busca analisar os efeitos colaterais (a perda da estabilidade, a instabilidade emocional e a segurança emocional) do longo processo de processo de privatizações das estatais, no final dos anos noventa. Podemos até dizer que este é um filme “dinossauro” “cringe”, palavra progressista do momento para denotar algo ultrapassado. O que Pedro quer não volta mais. Essa nostalgia controlada do entender as coisas. Tudo é transpassado por uma narrativa sempre evocativa e descolada para se construir uma intimista fábula-conto (de “nossa sobrevivência”) pela atmosfera naturalista de teatro vivenciado. A sensação das personagens nunca se completam. Cada um ali tenta “empurrar” um pouco mais “com a barreira” antes da assombração iminente de um futuro perdido.
Com roteiro do próprio diretor, em em colaboração com Flavia Castro e Fellipe Barbosa, “Homem Onça” é um filme pessoal. Vinícius Reis quer “continuar a explorar o interesse em contar histórias sobre as ambições e medos da classe média urbana brasileira”, processando interferências estruturais de outros cinemas, como o universo de Ken Loach e dos Irmãos Dardenne, só que com particular toque tupiniquim. É esse olhar abrasileirado que conduz o espectador pelo tom orgânico das ações e reações, cujos comportamentos, idiossincráticos e permissíveis, ganham a liberdade do improviso ensaiado. Mas isso apenas é consentido pela confiança máxima em seus atores, que se entregam sem ressalvas, desvencilhados dos artifícios facilitadores da interpretação. Por exemplo, a festa caseira da segunda parte da história, entre músicas, danças, drogas, bebidas e quebras de moral. “Homem Onça” é um espontâneo balé que sabe que está sendo filmado, acontecendo entre núcleos, ligados pela problematização trabalhista, tempos, espaços, intercalações histórias de arquivo, a dificuldade de abrir mão da cidade e a coragem de voltar às raízes. Que ora significa projeção-sonho. Ora o salto-digressão à calma silenciada de “alguns anos depois”.
A narrativa de “Homem Onça” é mais complexa do que se possa perceber. Vinícius precisa lidar com o tempo. Condutor, interpretativo e contextual. É um trabalho árduo não sucumbir às tentações dos gatilhos comuns. Ainda que o filme insira alguns, romantizando uma edição mais ágil, que vezes soa mais amadora (por mastigar com pragmática didática autoexplicativa – vinda principalmente pelos discursos dos filhos, metáforas do futuro), tudo mantém a “linha” com o tom espirituoso, adulto, mais realista, perspicaz e sarcástico do roteiro, como o “mestrado em Chicago” e/ou quando se explode na mesa do jantar contra “investidores e professores neoliberais canalhas – as pessoas que estão na moda“, logicamente, toda essa cadência vem de seus atores, que sabem muito bem seus papéis. Cada vez nós captamos mais a interna mudança do olhar. A cidade e empresa viram prisões. Uma aberta e outra necessitada. Uma nos obrigando a aceitar a contradição da liberdade. A outra, nos sugando com sua robotização e seu processo de “reestruturação”. O ambiente “expande” suas vozes com estrangeirismos à frenética “produtividade”. E o café não resiste no novo ecossistema. Tampouco a ingenuidade de provar que há livre arbítrio em “ser patrão de nós mesmos”.
Sim. Vinícius não desiste e força a quebra. Clara Nunes, “piadas internas”, Maria Bethânia e o “Molambo”. Manu Chao e o ser “Clandestino”. Noel Rosa e a “roupa”. Samba. O “julgamento” pela bola de futebol que acorda e que também soar como metáfora para despertar o mundo. O vinho. As conversas. A “transmutação” de sua pele. O walkman e a fita “memória afetiva musical” feita sob medida. É tão natural, “arrepiante” que “Homem Onça” consegue nos atiçar e trazer à tona a ideia da utópica revolução interna de cada um de nós: a de largar tudo e viver no mato, entre a natureza dos animais e da terra. Assim como em “Homem Onça” que se reconecta com o rio, Don Draper larga tudo e se prepara ao futuro. Mas o que não se pode prever é que liberdade é essa que “ganhamos” ao assinar o contrato desse “progresso”, visto que ser livre é apenas um conceito. Bem distante.
“Com o filme, continuo a explorar meu interesse em contar histórias sobre as ambições e medos da classe média urbana brasileira. No meu primeiro longa de ficção, Praça Saens Peña, de 2009, a questão da posse de um imóvel e o desejo por uma carreira profissional eram centrais para os personagens. Em “Homem Onça” , a importância do trabalho como identidade do ser humano é o que move os personagens“, explica o diretor, que retorna a Gramado após ter apresentado “A Cobra Fumou” e que agora “sobe a Serra Gaúcha para soltar os bichos”.