Holy Spider
Sem essa, Aranha
Por João Lanari Bo
Festival de Cannes 2022
Todo homem deve encontrar o que deseja evitar (Sermão 149, Corão)
“Holy Spider”, o filme que o diretor iraniano-dinamarquês Ali Abbasi realizou em 2022, ganhou uma inesperada voltagem com os trágicos acontecimentos que ocorreram no Irã na segunda metade do mesmo ano, 2022 – em 16 de setembro veio à tona a morte da jovem de origem curda Mahsa Amini, de 22 anos, enquanto estava sob custódia da polícia, presa, supostamente, por usar o véu islâmico, o hijab, de maneira incorreta. A continuação, cerca de 200 pessoas, de acordo com as autoridades, morreram em protestos por todo o país, vítimas da repressão policial: seriam 448 segundo ongs internacionais, mais de 2 mil processadas e 6 condenadas à morte. Nesse cenário medieval, narrar uma história baseada em fatos reais sucedidos entre os anos 2000 e 2001 – um serial killer casado, pai de três filhos, que largou todas as suas vítimas no mesmo lugar, depois de estrangulá-las – é quase um anátema. Na cidade sagrada de Mashhad, a segunda mais populosa do país, perto do Turcomenistão, o alvo são as prostitutas: um assassino se atribui uma cruzada misógina para limpar a cidade da corrupção. Saeed Hanaei – o nome do personagem, encarnado pelo excepcional ator Mehdi Bajestani, é verdadeiro – ficou conhecido na imprensa como Aranha, já que atraiu as 16 mulheres que matou para sua casa-teia, entre agosto de 2000 e julho de 2001, quando foi finalmente preso pela polícia.
Uma das ironias dessa história patética é que o véu era, em geral, o instrumento utilizado pelo assassino para enforcar suas vítimas. Na mais absoluta banalidade – entorno familiar carregado de afeto, ele trabalhador da construção civil e veterano da guerra Irã-Iraque, sangrento conflito que abalou a região entre 1980 e 88 – Saeed construiu seu percurso de forma resoluta, mas improvisada, até mesmo amadorística, diriam os observadores atilados com os action movies comuns e medíocres. No personagem matador de “Holy Spider” não há nenhum dos artefatos glamurizados que costumam envelopar os serial killers que infestam nossas telas. Submetida a um tratamento realista, um realismo seco e quase ingênuo, a narrativa termina por remeter a pulsão devastadora de Saeed a uma exacerbação sexual travestida de missão religiosa – sem propor superficiais e explicativos psicologismos, nada além da mera representação. E interpretação: Ali Abbasi era estudante e residia no Irã à época dos acontecimentos, mas o filme que realizou recria situações e personagens – a principal protagonista, a jornalista Rahimi, vivida por Zar Amir-Ebrahimi (ganhou o prêmio de melhor atriz em Cannes 2022), é pura ficção.
Para mim, não há nada de controverso no meu filme…há ampla evidência de que os iranianos fazem sexo. Há evidências de prostituição no Irã, assim como em todas as grandes cidades do mundo, disse o diretor, referindo-se às cenas de sexo de “Holy Spider”, obviamente inexistentes no cinema iraniano, à luz do moralismo censório dominante. O filme, aliás, é uma coprodução internacional e foi rodado na Jordânia. Em um ambiente onde cobrir os cabelos é uma obrigação para as mulheres, a sexualidade que emana na trama – Saeed faz sexo com a esposa, emotivo e intenso – confere uma organicidade indispensável à estética realista. A jornalista se coloca como contraponto ao irracionalismo religioso de Saeed e do ambiente em que se inserem seus crimes. No limite, uma certa inoperância policial motivada pela adesão popular à sanha justiceira em curso é confrontada pelo iluminismo modernizante de Rahimi. Na cidade sagrada que abriga uma das maiores mesquitas do mundo – Imam Reza, objeto dos murmúrios de Saeed – a polícia criminal tem pouco incentivo para resolver problemas que a polícia religiosa classificaria como solução.
E o véu, o hijab…Rahimi não esconde seu desconforto com o uso obrigatório, em vigor desde 1983, quatro anos após a Revolução Islâmica, que derrubou do poder a antiga monarquia do Xá Mohammad Reza Pahlavi. Naquele tempo o país era, para o bem e para o mal, aberto ao Ocidente. A questão permanece sendo um tema sensível: conservadores insistem na obrigatoriedade, reformistas defendem que o uso deve ser uma escolha individual. Com a pressão dos setores mais liberais da população, sobretudo nas grandes cidades, é normal hoje ver mulheres usando calças jeans e lenços soltos e coloridos para cobrir suas cabeças, ao lado das vestimentas mais austeras. Uma das traduções para hijab, de acordo com a Wikipedia, é o véu que separa o homem de Deus. Acredite, se quiser.