História de um Casamento
Quase um Segundo
Por Jorge Cruz
O passo que ninguém nunca quer dar, o fim de um relacionamento, por vezes é gestado a muito custo em nossas mentes. Em “História de um Casamento” o diretor e roteirista Noah Baumach (daquele que talvez seja um dos melhores filmes da década, “Frances Ha“) tenta recontar a história de sempre de sua forma particular e inegavelmente autoral. O espectador desavisado, que de forma sedenta dará play no lançamento imperdível e histórico da semana pelo serviço de streaming Netflix depois de ser exibido no Festival de Veneza, encontrará nos primeiros minutos um lindo romance estruturado em duas cartas.
Charlie (Adam Driver) descreve sua esposa com infindáveis atributos, quase como se a mulher ali exposta fosse produto da idealização, eis que se aproxima do que as convenções da sociedade entendem como perfeição. Quem ultrapassa essa visão romântica nas melosas palavras do autor da carta observa que estamos diante de uma promissora atriz de cinema, que abre mão da vida estabilizada na casa da família em Los Angeles, para abdicar de sua carreira para seguir os passos do marido – fato que ultrapassa o debate de isso ocorrer por vontade própria. A carta de Nicole (Scarlett Johansson) demonstra seu apreço por um diretor de teatro ciente de seus próprio desejos e empenhado em organizar a vida de tal maneira que siga seu rumo sem sobressaltos. Um casal que toca adiante seus projetos profissionais em conjunto, equilibrando as produções de peças com os cuidados do filho Henry (Azhy Robertson), de oito anos de idade. Na relação doméstica há um pouco de valorização de meras obrigações pela ala masculina, mas nada que agrida quem assiste nesse prólogo.
A partir daí Baumach veste novamente o traje padawan de seu mestre Woody Allen. Mesmo que uma neurose mais adocicada, deixando em Charlie um sentimento que o aproxima do bem resolvido para com o término do relacionamento. Ao dividir apenas com o espectador as cartas lidas no início de “História de um Casamento“, o roteiro cria certa cumplicidade com os dois personagens. Há uma constante troca de protagonismo, com longas cenas dedicadas a cada um deles. Os dois atores entregam trabalhos excepcionais e contam com o reforço de Laura Dern que traz equilíbrio à história como a advogada Nora Fanshaw, fazendo da primeira metade do longa-metragem impecável. Há um flerte com a comédia situacional nesses primeiros momentos de judicialização do processo de separação. É possível imaginar que parte do público ache graça e outro desate a chorar com a mesma cena, dependendo de como projetará suas experiências pessoais na experiência de assistir ao filme.
Falar sobre relacionamento é dialogar com quase todo mundo que prestigia sua obra. Já a tentativa de igualar os discursos é um dos grandes acertos de “História de um Casamento”. Nicole exprime em diálogos que funcionam quase como monólogos o quanto teve sua força e juventude cooptada e depois usurpada pelas atitudes do parceiro. Experiente na entrega de uma interpretação naturalista, Johansson brilha nas sequências onde domina as ações. Já Driver apresenta evolução técnica e também se sai bem nas vezes que lhe cabe o protagonismo.
Quando advogados entram em cena fica a impressão de que o roteiro seguiria caminho parecido com o clássico “Kramer vs. Kramer“, vencedor do Oscar de melhor filme em 1980. Porém, o texto aqui aprofunda mais na toxicidade que a já citada judicialização provoca, acabando com o pouco de respeito que resta na interação entre aqueles que se divorciam. Tóxico também é o trabalho dos defensores, vendedores de sonhos para quem ganhar é o único objetivo, sendo a Justiça mera consequência. Por sinal, quem merecia mais tempo de tela é o advogado Jay, interpretado como Ray Liotta, que desponta como um antagonista imparável em sua sanha por vitória. No meio de um grupo de personagens que medem as palavras para respeitar seus processos de desconstrução, ele surge como um furacão mal utilizado.
Esse subaproveitamento é apenas uma das questões que faz com que a segunda metade de “História de um Casamento” não funcione tão bem quanto a primeira. Quando o conflito está mais do que estabelecido e os caminhos para as soluções surgem como lógica, o texto de Baumach volta duas casas para regurgitar a raiva que Nicole e Charlie sentem um do outro. Parece que aceitar que anos de suas vidas foram supostamente desperdiçados não se mostra uma opção, mas apenas na reta final. Tudo o que parecia bem resolvido, articulado e fundamentado ao longo de quase uma hora e meia, descamba para o histrionismo tardio. Se isso conta ponto para o currículo de quem atua, também obsta a regularidade do curso do filme, que dosava até então seus elementos. Seu terço final, por vezes, lembra muito “Foi Apenas um Sonho” adaptação do livro de Richard Yates dirigida por Sam Mendes e que ficou mais conhecida como a volta do casal de Titanic aos cinemas. Só que ali os personagens de Kate Winslet e Leonardo di Caprio assumiam desde o início a busca pelo conflito e a trocação era parte fundamental de sua constituição.
Tirando essa ligeira transição de personalidade, justificável se imaginarmos que Nicole e Charlie viviam no limite, porém desfavorável para o curso regular do longa-metragem, “Histórias de um Casamento” tem a marca da estrutura consistente de uma obra de Noah Baumach. Afastando tudo o que parece ter envelhecido nas premissas allenianas, as referências que ficam são até divertidas. Vale mencionar a participação de Alan Alda no papel de Bert que nos lembra uma das grandes obras do cineasta, “Crimes e Pecados” de 1989; e a desconjuntura de Adam Driver cantando “Being Alive” composta originalmente para o musical da Broadway “Company“. Alguns fãs podem se recordar de um Woody Allen todo desconjuntado em “Todos Dizem Eu Te Amo” cantando “I’m Through With Love”, standard americano de 1931, imortalizado por Marilyn Monroe em 1959 no filme “Quanto Mais Quente Melhor“. A sorte de Baumach que Driver é muito mais afinado e um momento que beirava a pieguice até casar de forma harmoniosa com o que lhe envolve.