Girassol Vermelho
Performance e suas variações
Por Vitor Velloso
Assistido presencialmente na Mostra de Tiradentes 2025
O filme de abertura da 28ª Mostra de Cinema de Tiradentes, “Girassol Vermelho”, de Eder Santos (de “Deserto Azul“), com co-direção de Thiago Villas Boas, transita pelas possibilidades do realismo fantástico, tomando como referencial o texto de Murilo Rubião: “A Casa do Girassol Vermelho”. O projeto faz um movimento entre uma perspectiva poética e um retrato das diferentes repressões sociais e políticas que o protagonista Romeu, interpretado por Chico Diaz, sofre ao longo da obra. Funcionando quase como uma representação do calvário político vivido pelo povo brasileiro nos últimos anos, a ambientação industrial acaba explicitando como a liberdade e as formas de expressão são encarceradas pela truculência da homogeneidade e da repressão.
A escolha de “Girassol Vermelho” para abrir a Mostra de Tiradentes é bastante indicativa dos caminhos que a temática “Que cinema é esse?” oferece para debate. Trata-se de uma concepção que se opõe à ideia de um cinema único, com uma identidade fechada, abraçando, em vez disso, a multiplicidade e a experimentação, mesmo que de maneira errática. Assim, o filme consegue traduzir a atitude canhestra e tacanha de instituições repressivas, que atacam até mesmo a “curiosidade” do protagonista. Não por acaso, os elementos militares que surgem nesse cenário propositalmente artificial e hostil agravam a sensação claustrofóbica impressa na tela. A fotografia, assinada por Stefan Ciupek, intensifica essa atmosfera sufocante ao investir em luzes graves e sombras marcadas, reforçando os destaques parciais no quadro e imprimindo tensão e brutalidade através desses recortes visuais.
Além da estética opressiva, a trilha sonora também desempenha um papel fundamental na construção do desconforto. Os sons industriais, muitas vezes dissonantes, se sobrepõem a diálogos e ruídos ambientes, criando um efeito que amplifica a alienação vivida pelo protagonista. Essa escolha sonora dialoga diretamente com a proposta do filme, evidenciando um mundo mecanizado e regido por engrenagens invisíveis de dominação e controle. A sensação de aprisionamento se expande por meio do design de som, que incorpora ruídos mecânicos e reverberações metálicas, tornando a jornada do personagem ainda mais angustiante.
De alguma forma, o trabalho de Eder em vídeo instalações é projetado em sequências específicas, com destaque para a cena do jantar, onde a estrutura performática expõe a delirante realidade representada. Entre alegorias e metáforas, o filme vai expondo a particularidade dessa projeção concreta de um moralismo violento e crescente, compreendendo que se trata da representação de uma parcela da sociedade brasileira e de características reacionárias presentes e institucionalizadas na cultura nacional. Nesse sentido, o realismo fantástico sempre foi hábil em materializar discussões acerca de uma realidade particular, ainda que seja instrumentalizado como uma espécie de muleta por algumas obras específicas. Não é o caso de “Girassol Vermelho”, que consegue trabalhar sua estrutura à la “Mistérios e Paixões” (1992), de Cronenberg, com referências estéticas lynchiana e uma forma progressiva de trabalhar com a dialética do sonho e obscuridade.
Contudo, há uma questão sobre o ritmo do filme, que parece encontrar boa cadência em seu desenvolvimento inicial, mas depois enfrenta resistência em algumas sequências que se alongam demais, criando uma sensação de excesso e tornando a experiência cansativa. Assim, quando chegamos ao fim da projeção, estamos exauridos pelo esforço de adentrar nessa experimentação de linguagens, diálogos que podem soar desconectados e um hermetismo generalizado. Ainda assim, essa estrutura hermética pode ser vista como um convite à interpretação, permitindo múltiplas leituras e uma relação mais subjetiva do espectador com a narrativa.
A ousadia formal e a abordagem política do filme fazem dele um projeto essencial para a discussão sobre os rumos do cinema contemporâneo brasileiro. “Girassol Vermelho” se insere dentro de uma tradição de obras que desafiam o espectador e tensionam as fronteiras do real, recusando explicações fáceis ou narrativas convencionais. É um filme que incomoda, que exige engajamento e que propõe uma reflexão sobre a violência simbólica e concreta que estrutura determinadas camadas da sociedade.
Dessa maneira, a obra reafirma a importância de um cinema que não se submete a fórmulas preestabelecidas e que, em sua radicalidade, consegue refletir o espírito de uma época. Mesmo que sua construção estilística e narrativa possa afastar parte do público, “Girassol Vermelho” se posiciona como um trabalho relevante e instigante, que não apenas dialoga com a tradição do realismo fantástico, mas também atualiza suas inquietações à luz do Brasil contemporâneo. Mais do que um simples filme, ele funciona como um manifesto visual sobre resistência, controle e a fragilidade das liberdades individuais.