Fogo-Fátuo
Fogo-fálico, fogo-efêmero
Por Paula Hong
fogo-fátuo
substantivo masculino
- luz que aparece à noite, ger. emanada de terrenos pantanosos ou de sepulturas, e que é atribuída à combustão de gases provenientes da decomposição de matérias orgânicas; boitatá, fogaréu.
- Figurado
falso brilho, glória passageira.
Se o cinema, ao longo de sua história, irrigou-se das artes que vieram antes dele sem o compromisso de melhorá-las, “Fogo-Fátuo” segue uma lógica parecida ao tocar em temas mais insurgentes na sociedade contemporânea — (neo)colonialismo, aquecimento global, racismo, homofobia — sem o empenho de se aprofundar neles ao longo do filme, ao mesmo tempo que não deixa de fora questões internas de seus personagens — descoberta da sexualidade na juventude, desejos e a exploração deles, a relação dos corpos com os espaços que ocupam, fetichismo — muito presentes em seus filmes. A combinação temática primária, fortemente ancorada em provocações políticas, é, na verdade, pretexto para mostrar as ambições que se dispõe a falar: uma fantasia musical homoerótica em que um príncipe branco e um bombeiro musculoso negro, ambientados num pano de fundo eco-sócio-político complexo, conjuntamente exploram os desejos de seus corpos.
O tom satírico do filme é apresentado logo na primeira cena. O ano é 2069 — aqui, a “piada” já está dada. Vemos Alfredo (Joel Branco), o rei sem coroa de Portugal, em seu leito de morte. Os sons onomatopeicos de puns com os quais somos acolhidos, enquanto o sobrinho-neto dele brinca com um carrinho de bombeiro, parece querer acrescentar à piada. Atrás de Alfredo, uma grande pintura cujas figuras são apenas pessoas negras. O menino canta uma música que logo mais entenderemos a origem geracional dela. Ele deixa o brinquedo na cama do rei. A câmera, em um zoom-in, aproxima até o boneco do carro de bombeiros: é um bombeiro negro. A música desperta as lembranças do rei. Enquanto balbucia a música, seu rosto dissolve-se a uma delas para quando era garoto. Acompanhado de seu pai, o então príncipe Alfredo está rodeado por longas árvores portuguesas que chegam até ao céu. Aqui, uma analogia que é repetida à exaustão ao longo do filme: as árvores figuram pênis. Não à toa, é no mesmo local que o jovem príncipe tem uma ereção e, não muito depois, vemos a primeira apresentação musical do filme. A cena anuncia um interesse simbólico por árvores que mais tarde será explicitado pela analogia feita durante filme.
Agora estamos em 2011. A família real janta à mesa enquanto o noticiário denuncia as devastadoras queimadas nas florestas de Portugal. Eles estão rodeados por obras artísticas em que pessoas negras estão representadas — aqui o diretor parece tecer um comentário superficial sobre a história colonialista portuguesa. O jovem Alfredo (Mauro Costa), impressionado com a notícia, saca o seu iPhone e, quebrando a quarta parede, começa a papaguear para a câmera o famoso discurso de Greta Thunberg na ONU, em 2019. Um ano mais tarde, ele anuncia a seus pais que quer se tornar bombeiro. Apesar da reprovação da mãe, Teresa (Margarida Vila-Nova) o pai, Eduardo (Miguel Loureiro), apoia.
No quartel dos bombeiros, homens musculosos treinam intensamente. As cenas de apresentação deles, principalmente no que tange a seus corpos, remetem a “Beau Travail” (1999). Há um certo erotismo bonito de se ver, um gay-gazing à la Claire Denis. Ele se voluntaria na corporação e quem é designado para ensiná-lo e guiá-lo durante as sessões de treinamento é o bombeiro Afonso, negro, estudante de Sociologia. Aqueles corpos em relação à figura quase raquítica do príncipe, estudante de História da Arte, desenha um contraste intimidador que logo o coloca como uma figura fraca e alvo de piadas. Para testar seus conhecimentos, como esculturas de carne e osso, os bombeiros imitam obras de arte clássicas e autorais. O príncipe não acerta nenhuma delas.
Não demora muito para Alfredo e Afonso desenvolverem uma relação, sobretudo sexual. Os treinamentos, que existem contato físico constante, acendem esse fogo entre eles, e o idealismo de salvar as florestas é logo dissipado pela relação. É através dela que “Fogo-Fátuo” toca nas confluências de privilégio e fetichismo racial entre os dois, sustentada pelo passado aristocrático de Portugal. Os personagens são como personificações das discussões previamente levantadas. O relacionamento de Alfredo e Afonso atravessa uma superficial discussão progressista sobre o tabu imbricado na relação interracial e homossexual deles. Uma das cenas mais bonitas, embora um pouco amadora, é o número musical em que eles dão início a uma coreografia na qual estão somente os dois para, em seguida, os outros bombeiros — inclusive as únicas duas mulheres da corporação, Comandante (Cláudia Jardim) e a bombeira Otília (Joana Barrios) — se juntam a eles.
Mais tarde no filme, o diretor retoma em duas cenas os trocadilhos do ano de 1969 e os das árvores. A primeira é quando Alfredo e Afonso transam na parte da floresta que acabara de ser queimada: seus corpos dão forma ao desenho dos números 6 e 9 e, numa troca de “dirty talk” irônica estereotipada e desconfortável, eles gozam no rosto um do outro. Mais tarde, numa apresentação de slides, Afonso passa fotos de pênis — inclusive o do próprio diretor, cuja imagem fora extraída do seu curta metragem “Où en êtes-vous, João Pedro Rodrigues?” —, enquanto Alfredo os nomeia com nomes de árvores, pois, como disse Afonso: “Como espera salvar a floresta se não é o seu objeto de desejo?”. Ironicamente, ou tentando ser, é quando o jovem príncipe recebe a ligação de que seu pai morreu. A relação dos dois é abruptamente interrompida pela notícia que põe fim também à carreira de bombeiro de Alfredo.
A curta duração do filme, pouco mais de 60 minutos, compacta comentários sobre esses assuntos por intermédio de piadas, trocadilhos e sarcasmo, sem o intento de oferecer conclusões. O filme “Fogo-Fátuo” perpassa por caminhos cuja acidez do tom demora a dizer ao espectador que ele pode rir, caso ache graça das piadas. O filme é notoriamente fálico, estranho, por vezes desconcertante, mas impossível deixar de tirar os olhos da tela — efeito já registrado do diretor em filmes anteriores. Os diálogos sofrem certa ausência de organicidade, o que garante a estranheza às cenas, além da atmosfera satírica e levemente cômica. Referências a obras de artes clássicas, nudez masculina, quebras da quarta parede, números musicais e comentários políticos nem sempre funcionam durante o filme, mas parecem orquestrar um encontro sensual ardente que queima em si mesmo e que, por isso mesmo, dura pouco, mas deixam impressões vitalícias. Na cena final, com o rei Alfredo já morto na capela, rodeado por bombeiros e pessoas da família, uma figura encapuzada adentra o local. Como numa fofoca, as personagens de Raquel Rocha Vieira e Anabela Moreira nos deixam a par dos acontecimentos não contados após a separação dos dois. Elas pedem para que ele descubra seu rosto. Imediatamente, ele é reconhecido por todos ali: é o presidente de Portugal, Afonso (Oceano Cruz).