Flores do Cárcere
O cárcere veste preto
Por Vitor Velloso
Durante o Festival do Rio 2019
O sistema carcerário brasileiro não é apenas problemático, mas sim criminoso. Em toda sua estrutura, o terror que emana diretamente das prisões reflete a violência que está presente em cada centímetro das penitenciárias. “Flores do Cárcere” olha para esta questão, mas secciona para uma ala pouco debatida no cinema: o encarceramento das mulheres nas prisões brasileiras.
Dirigido por Paulo Caldas e Bárbara Cunha, o filme busca amparo no romance homônimo de Flavia Ribeiro de Castro, se estruturando como um documentário com elementos ficcionais. O longa acompanha a história de Mel, Xakila, Dani, Charlene, Rosa e Ana Pérola, ex – detentas da Cadeia Feminina de Santos, agora 12 anos depois retornando ao local para contar suas histórias, experiências e lições que podem tirar dos abusos físicos e psicológicos sofridos. Ao escutarmos de uma das ex-detentas que “cadeia foi feita para homem, não para mulher”, compreendemos toda a problemática trabalhada ali pelos dois diretores.
A intenção de “Flores do Cárcere” ultrapassa apenas uma dimensão política, mas abrange um âmbito social e humanístico que não deveria ser ignorado pela sociedade e pelo Estado, pois além da precária situação das penitenciárias, não há perspectiva de reinserção após a pena cumprida, pelo contrário, há um forte rebote da população com todas as pessoas que deixam o presídio. Além do mais, o filme mostra como parte dessas mulheres acabam indo parar nas cadeias como bode expiatório de crimes cometidos por seus parceiros etc, uma demonstração óbvia de como o patriarcado ultrapassa uma questão singular como um setor da sociedade costuma impor.
E ser conveniente com isso é tão criminoso quanto aplicar tais práticas. Neste ponto Paulo Caldas (de “Saudade”) e Bárbara Cunha são contundentes em retratar o descaso para aquelas vidas ali presentes, além de destacar que a maioria das prisioneiras são negras e sofrem uma punição que não lhe diz respeito, é obrigada a ficar longe de seus filhos enquanto convivem com outras mães que choram ser ver seus filhos chorarem.
Um dos recursos interessantes utilizados neste projeto, é a inserção de uma atriz para trabalhar uma questão propriamente fílmica, aproximar a tênue linha que segrega o documentário da ficção. A atriz participa de uma interação direta com aquelas mulheres reais, com histórias brutais, que sofrem até hoje, mais de uma década depois, com os fantasmas do passado, além da dificuldade de se realocar em uma sociedade que as rejeita pelo medo gerado pela mídia que exclui de seus notícias a realidade deste mundo interno das prisões brasileiras. E quando o fazem, é de uma perspectiva masculina. Não à toa, “Flores do Cárcere” recebeu diversas matérias comentando não só a representatividade feminina que busca, mas a coragem de ir atrás dessa temática tão negligenciada.
Formalmente, o longa-metragem possui decisões curiosas em seu processo, além das entrevistas e dos relatos que são expostos aqui, imagens de arquivo compõem uma costura sólida da realidade que as ex-detentas comentam. A escolha da locação é sempre uma faca de dois gumes, pois existe um impacto emocional direto daquelas mulheres com aquele local novamente, porém abre uma porta importante para um exercício de expurgo e superação daquele momento também. E a maneira como os diretores filmam esses relatos, é vigorosa de uma perspectiva plástica, pois é rigorosamente enquadrado para que haja uma harmonia na composição, sem que sufoque as entrevistadas, mas consegue aplicar uma rigidez gélida que transmite a essência dos depoimentos.
“Flores do Cárcere” é uma obra que dimensiona uma problemática grave da realidade nacional para um campo dúbio entre a ficção e o documentário, mas faz isso com leveza e uma autoconsciência de se louvar. Paulo Caldas e Bárbara Cunha conseguem emplacar mais um grande filme para a filmografia invejável de documentários que o Brasil emplaca há décadas. A pouca divulgação de críticas acerca do longa explicita a recusa do cinema documental, a negligência com a temática ou a preferência por obras estrangeiras, já escancarada na abertura do Festival do Rio.
Ainda que o setor decida dar prioridade a outras obras, é importante lembrar que tal atitude enfraquece o cinema nacional com um vigor ímpar, que se assemelha ao desmonte da Ancine. Se é possível fazer algum apelo aos colegas de ofício, escrevam sobre “Flores do Cárcere”.
“Avisa pros amigo que ficou em cima do muro que eu vou começar a pôr cacos de vidro nessa p….” Black, Luto 2