Família de Axé
Que os atabaques ressoem contra a intolerância
Por Roberta Mathias
Durante o Festival do Rio 2019
A diretora Tetê Moraes esteve pela primeira vez no terreiro de Alberto Ribeiro Santana em 1985 por conta de uma reportagem que fazia para a BBC. Desde então, se aproximou da família consanguínea e da de axé do pai de santo. A ideia já era antiga e Tetê aproveitou suas idas a Salvador para filmar entrevistas e pedaços de festas do Ilê Asé Omi Min Idé. Comandado por Alberto, o terreiro, localizado em Salvador conta com uma família de axé que mistura seus próprios parentes a pessoas que buscaram na religião uma maneira de criar laços e expressar suas crenças.
A exibição de “Família de Axé”, da premiada Tetê (que, vale lembrar, ganhou melhor documentário do Festival do Rio em 2000 por “O sonho de Rose – 10 anos depois”), além de mesclar pessoas ligadas ao próprio terreiro, também reuniu diretores e especialistas da área que foram prestigiar a mostra Panorama.
Ao começar por planos aéreos da cidade de Salvador, a diretora dá uma ideia geral do contraste entre os espaços urbanos, mas também anuncia uma linguagem que norteará o filme. Com uma narrativa que beira o didatismo, os integrantes explicam suas funções, seus orixás de cabeças, a diferenças entre as falanges e a importância dos rituais. Admito que esse tom me incomodou e dificultou um pouco que eu me envolvesse com o filme. No entanto, me lembrei como é forte a intolerância e como pouco sabemos – como público geral- sobre as religiões de matriz africana.
O filme de Moraes funciona como um registro dos rituais do terreiro, mas também como registro do afeto construído durante anos entre ela e essa família. Tete é madrinha de um dos meninos e presença constante nas festas de família. Um acontecimento, que nos é revelado somente ao final do filme, também evidencia a necessidade de registrar espaços como esse, apesar do impedimento e do segredo que permeiam a religião. Os ensinamentos do axé são passados para os iniciados através da oralidade, outra herança de raízes africanas.
Nesse sentido, por mais que “Família de Axé” não tenha me tomado pela forma- Tetê pergunta muito e acho que essas informações poderiam ser passadas de maneira mais fluidas- ele me toma pela importância aguda de mostrar que os integrantes de religiões de matrizes africanas são como qualquer outra pessoa. Riem, erram, dançam, fofocam e brincam.
A diretora apresenta cada um dos integrantes com suas funções, mas também com suas vidas para além do terreiro: Eurídes, Noca, Nita, Adauto, Sandra, Renato. E, o próprio Adalberto que trabalhava como restaurador no Museu de Arte Moderna de Salvador.
Observar esses espaços talvez seja essencial para desconstruir os estigmas cristalizados em uma sociedade estruturalmente católica que agora vê religiões neopentecostais mostrarem suas forças. Nada contra uma ou outra, no entanto, os Orixás também são poderosos. Em uma das cenas mais bonitas na Festa de São Lázaro (a qual já tive a oportunidade de acompanhar), o sincretismo se faz gritante. Orando por São Lázaro e por Omulu ao mesmo tempo, atabaques se misturam aos cânticos da Igreja de São Lázaro e, somente depois, retornam ao terreiro.
Talvez por entender o candomblé mais como uma religião do sentir e não do explicar, a minha relação com o filme não foi a de envolvimento completo. Reforço, no entanto, a importância dele como registro e contraposição às visões agressivas que tomam conta de cidades como Salvador e Rio de Janeiro. Não é ao desconhecer que iremos compreender a fé do outro, mas é ao nos aproximarmos. Nesse sentido, “Família de Axé” cumpre seu papel. Talvez agora falte aos curiosos e assustados se permitirem ir a um terreiro para entender a magia e a beleza que se dá naquele espaço, mas reverbera nos sons dos atabaques pelos corpos de todos que estão presentes.
Pedir ao pai Ogum para abrir os caminhos, para a maldade não enxergar os corpos de seus filhos. Com vontade e carinho, Adalberto passou esses ensinamentos desde a década de 80. E eles não se apagam com o tempo. Aliás, a repressão que as religiões africanas sofreram em nosso país só mostra que, apesar de tudo, elas sobrevivem.
“Pà ta ko ri Ògún (Ogun guerreiro toma conta de suas terras)
Ògún Je si je si (Ògún, nos sustente))
E Aáké lódè koró oun bè lè (Pedimos que use as suas armas para vencer nossas lutas)
Akóró o Ògún já koró oun bè lè (Ogun Akoro pedimos que nos dê forças e nos ajude a vencer nossas lutas)”
O filme está disponível nas plataformas digitais NOW, Oi Play, Vivo Play, Itunes, Google Play e Looke.