F For Fake: Verdades e Mentiras
Verdades e Mentiras sobre Orson Welles
Por João Lanari Bo
Com “F For Fake: Verdades e Mentiras”, pensei ter descoberto um novo tipo de filme, e era o tipo de filme que eu gostaria de passar o resto da minha vida fazendo. O fracasso do “F For Fake: Verdades e Mentiras”, na América e também na Inglaterra, foi um dos grandes choques da minha vida. Eu realmente pensei que estava no caminho certo. Como forma, é um filme de ensaio pessoal, ao contrário de um documentário. É bem diferente – não é um documentário (Orson Welles em entrevista para Leslie Megahey, 1980).
Jorge Luis Borges, ilustre personagem que despistava e desconstruía referências mentais entranhadas na cultura, escreveu que o mais famoso filme de Welles, “Cidadão Kane”, parecia um labirinto sem centro. A imagem, assustadora, serve também como descrição da trajetória errante de Orson Welles no cinema, a partir do sucesso estrondoso da estreia. Orson Welles, como é sabido, não apenas escolheu personagens ariscos e incertos em relação ao “contorno identitário”, como também ele mesmo tratou de forjar um emaranhado de pistas para seus biógrafos, despistando mais do que dando pistas, projeto que culminou no genial filme-ensaio “F for Fake” (Verdades e Mentiras, 1973).
Como William Shakespeare, por exemplo, Orson cultivou um uso e abuso da “licença dramática” no que concerne à identidade autoral, trabalhando situações limítrofes onde narrativas e personagens parecem esvair-se diante dos nossos olhos de tão fluidas e bem construídas que são. Não é este o núcleo narrativo de “F For Fake: Verdades e Mentiras”? Seria Orson Welles um artista barroco e radiante ? ou um prestidigitador, um… charlatão ? Os shakespearianos ortodoxos de todos os quadrantes, inclusive no Brasil, torcem o nariz para a versatilidade e o ímpeto deglutivo com que Orson trabalhou em cima dos textos ditos “clássicos” do bardo, cortou cenas e personagens, introduziu situações e fundiu personagens. Sua famosa montagem “Voodoo MacBeth”, encenada no Harlem, em 1936, foi um sucesso de público e crítica; inspirado pela esposa, Welles transferiu o set da peça para o Haiti, convocou um elenco exclusivo de atores negros (na linha do Teatro Experimental do Negro, de Abdias do Nascimento) e, claro, soltou a mão no voodoo, contagiando a narrativa com uma ênfase acalorada na bruxaria.
Esse deslocamento permanente de personagens e situações iria adquirir o aroma pós-moderno definitivo em “Verdades e Mentiras”, caracterizando uma espécie de instabilidade e assustando muita gente, que enxergou uma tendência conservadora na deriva cronológica da obra wellesiana. Nada mais equivocado: como diz a pesquisadora Catherine Benamou, wellesiana de boa cepa: talvez seja preferível falar da relutância de Welles em aceitar qualquer crença única como dogma – embora ele tenha permanecido muito comprometido com os direitos humanos e civis – e de seu afastamento gradual dos canais formais de expressão política, para se concentrar sobre o filme de ensaio como um fórum de debate.
Para Orson, portanto, realizar um filme-ensaio é sobretudo um ato político. Welles, uma criatura meio iluminista meio renascentista, e também influenciado pelo New Deal de Roosevelt, como lembra Benamou – passou a vida às voltas com pressões e preocupações associadas à alta voltagem de seus projetos e a às dificuldades inerentes de realização. A vertigem da linguagem radiofônica que produziu nos anos 30, por exemplo, reaparece em certa medida no revolver de camadas dos sujeitos-falsários que atravessam “F For Fake: Verdades e Mentiras”, configurando uma pressa que conflui para a “potencialização do falso” como moeda de troca da linguagem. Em quem acreditar? E não é esse o dilema da pós-verdade política dos nossos dias?
Ao fabular com humor e versatilidade nas fronteiras que regulam nossa relação com o que chamamos de “realidade” – verdadeiro ou falso, binômio arquétipo do mundo objetivo – Orson executa com maestria a receita de Deleuze, que propõe a necessidade de ultrapassagem dos limites entre real e ficcional (ou imaginário) no discurso artístico. Mas, atenção: não se trata de extinguir essa fronteira, mas de torná-la incerta, escorregadia, indiscernível. No limite, o que importa é enxergarmos a ficção como potência de criação, em outras palavras, compreender que mesmo a verdade é uma ficção. Não é outra a atualidade gritante de “F For Fake: Verdades e Mentiras”.