Curta Paranagua 2024

Entrelinhas

Quem pergunta?

Por Letícia Negreiros

Entrelinhas

“Entrelinhas”, longa-metragem dirigido e produzido por Guto Pasko, nos leva de volta à Curitiba de 1970. Seis anos de regime militar, com mais quinze pela frente. A obra nos conduz pela narrativa de Ana Beatriz Fortes (Gabriela Freire), presa durante a ditadura. Tendo novamente a figura dos estudantes como essencial para a oposição e luta contra os militares, o filme nos apresenta uma imagem mais próxima do estar, de fato, nas mãos do inimigo. Beatriz, em um quarto, mexe furtivamente em uma carta. Nonato (Eduardo Borelli) revela fotos em uma sala vermelha. Elias (Renet Lyon) é preso. O paralelismo da montagem busca imprimir no espectador uma apreensão. Beatriz e Elias estão sendo observados. O espectador projeta no início de um dia comum na vida da jovem esse receio. Pasko não brinca com as possibilidades. Logo ela é detida e levada ao DOPS – Departamento de Ordem Política e Social -, onde é acusada de envolvimento com o movimento estudantil e com a VAR-Palmares, guerrilha armada contrária ao regime. 

Pasko se esforça para estabelecer uma marcada discrepância entre os ambientes livres do medo e dos ambientes assombrados por ele. A referência da cinematografia que Alziro Barbosa traz para “Entrelinhas” é clara. Desde o primeiro contato de Beatriz com os militares – seu primeiro dia em um novo emprego, do qual é sequestrada -,  o contraste de iluminação é alto. Os rostos com sombras marcadas, o ambiente com transições abruptas e dramáticas entre claro e escuro resgatam uma certa influência do cinema noir. O uso dessa escolha estética apenas na delegacia, nas celas e ambientes de tortura dita o tom dado à obra. A atmosfera resgata a ideia de investigação e o espectador se vê buscando involuntariamente. No entanto, a única investigação promovida é contra Beatriz. Involuntariamente, fazemos a mesma pergunta que os militares: ela, de fato, teria algum envolvimento com o movimento estudantil? 

Esse paralelismo entre espectador e opressor não parece ser proposital. “Entrelinhas”, em momento algum, joga o peso de cúmplice ao seu público. Não incita a refletir o que fazer em uma posição daquelas, como salvar qualquer uma dessas pessoas. Em nenhum momento o espectador é posto em xeque por acompanhar os acontecimentos. O juízo de valor é muito claro. Os militares são ruins, como deveriam ser. O espectador se ver obrigado a partilhar um questionamento com o opressor é apenas uma infeliz coincidência. 

A narrativa se desenvolve de forma lenta em um primeiro momento. A única agitação real e interessante provém da iluminação. O longa se mostra apático enquanto acompanha apenas Beatriz em seu cárcere. Apesar do contexto terrível e situação atroz, o desconforto e a tensão são oriundos do conhecimento prévio dessas condições. Por conta própria, a narração se mostra letárgica. Até que ela é posta frente a frente com Elias. Ana Beatriz não gera emoção de forma autônoma, mas ganha uma verdadeira potência três vezes – na presença de demais presos políticos. Este é o primeiro deles. Ele, acorrentado à cadeira elétrica, é questionado se a conhece. Ela, vendo-o ser torturado, é perguntada se o conhece. Nesse momento, somos bombardeados por toda a emoção ausente até então. Toda a interação com Elias é carregada de culpa e de traição. Ainda assim, é Lyon que causa mais impacto na cena. O pedido de desculpas acorrentado à cadeira elétrica é dilacerante. 

Mais a frente, “Entrelinhas” a coloca em uma cela desconhecida. Antes sozinha, depois brevemente com uma companheira. Este é o segundo momento. O companheirismo e o carinho instantâneo estabelecido entre as mulheres é comovente. A identificação pela infelicidade da prisão ganha um peso maior diante da empatia feminina. Beatriz não precisa ter passado por aquela tortura. O medo é um fator determinante, mas a projeção feminina é muito maior. 

Já o terceiro momento é uma quase ruptura. Não há factualmente a presença de um outro preso com ela, mas a ideia do fantasma paira no ar. Quando é solta, descobre que as acusações contra ela eram infundadas. Elias, um dos motivos pelo qual foi presa, foi vítima de sua própria teia – complexa – de meias verdades. E, ainda assim, sua morte foi em vão. 

“Entrelinhas” se diz um filme de ficção livremente inspirado em fatos reais. Talvez por Ana Beatriz realmente existir, talvez pelo filme não contar sua história de forma completamente fiel. Talvez por Ana Beatriz ser apenas uma máscara para todos os presos que não saíram com vida ou com paradeiro desconhecido. Talvez seja a fala de Major Borges (Daniel Chagas) ao deixar Ana em casa – “Desculpe. Foi engano.” – que torna a obra ficcional.

2 Nota do Crítico 5 1

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