Edifício Gagarine
Uma odisseia em terra francesa
Por Fabricio Duque
Durante o Festival Varilux de Cinema Francês 2020
Exibido no Festival Varilux de Cinema Francês 2020, após estar na seleção oficial do Festival de Cannes do mesmo ano, que foi cancelada devido à pandemia do Coronavírus, “Edifício Gagarine”, dos realizadores e roteiristas Fanny Liatard e Jérémy Trouilh, estreantes na direção de um longa-metragem, é muito mais do que uma simples trama ficcional sobre um marco História da França, e sim uma crítica-crônica, intimista, do micro para o macro, da situação desse país, que mergulhou em uma recessão imobiliária à beira do colapso, capitalizada por uma gentrificação, motivada pela desindustrialização da França. Se o prédio Gagarine, chamado de cidade, projeto habitacional dos anos sessenta, localizada em Ivry-sur-Seine, representou um símbolo de futuro de uma ideologia do Partido Comunista Francês, o comunicado da evacuação dos quase sessenta mil moradores, e da demolição total do Gagarine (em 2019 ao longo de 16 meses), agravou uma ruptura com o próprio passado. De uma época em que sonhos estavam mais possíveis de serem realizados. Como o do cosmonauta russo Iuri Gagarin, o primeiro humano a viajar na órbita do Espaço. Esse marco, de homenagem ao astronauta (pelo nome ao edifício em T) trouxe esperança a uma nova França mais humanitária. Menos capitalista. Mais orgânica. Menos defensiva. Mais real.
Tudo isso está traduzido no filme “Edifício Gagarine”. Todas as histórias cotidianas de suas famílias moradoras, iniciadas em 1961, e inauguradas oficialmente em 1963, com a participação do próprio Gagarin, representadas em uma. Um jovem sonhador, à moda marveliana de “Wakand para sempre”, e resistente às pressões do abandono concretista, que busca até o fim preservar as memórias e as alegrias do passado. O protagonista Yuri, com o mesmo nome readaptado do astronauta mencionado acima, condensa todas as metáforas e analogias presente neste filme. Ele quer dar vida ao prédio (consertando e organizando para deixar o lugar seguro), uma época que considerava melhor do que agora. Uma nostalgia de união. De solidariedade. E de amor familiar e não de abandono à deriva em seus espaços subjetivos. Nas entrelinhas, bem sugestivas, a crítica é sobre a incapacidade da França em lidar com o novo. Aceitar novas formas de vida e novos povos habitantes. Cidadãos “ciganos” e de outras geografias estrangeiras precisam encontrar maneiras de sobreviver: ir a Nice e/ou aos Estados Unidos (“porque lá todo mundo é livre e se pode viver como quer”), por exemplo.
“Edifício Gagarine” busca conduzir seu público pela intercalação de uma racionalização emocional, de imagens reais da época, de simbolismos por um eclipse (fenômeno que o a lua se interpõe “alguma coisa” entre a Terra e o Sol) e um respiro narrativo, por meio de uma estrutura mais palatável, como as obras trabalhadas pela coletividade dos moradores em um lapso temporal, com música e atmosfera confortável-feliz a quem assiste. Quase um que mais caseiro das obras de Spike Lee. Ainda que esses gatilhos possam soar comuns, às vezes ingênuos e frágeis, o filme não perde a força. A carga dramática está nessa ingenuidade. De retratar e de processar em tela. Aqui, a metáfora máxima estar em trazer a noite para o dia, a fim de alertar a escuridão que cresce na existência dos terráqueos, “estimulados” a uma drástica realocação de um lugar que construíram suas vidas. O que se podia no antes, agora é “impróprio”, por quesitos técnicos de segurança (encanamento, amianto, infestação de ratos, por exemplo). A solução de Yuri ficcional é construir sua própria (e improvisada com o que consegue) estação orbital aos moldes de “2001 – Uma Odisseia no Espaço”, com ventilação preparada e horta naturais e autossustentáveis (uma transgressão ao sistema que nos obriga a consumir o excesso pronto para “aumentar” nosso tempo automatizado). Essa é sua ma fuga-luto, de ir até o fim pelo único sonho que tinha: o ficar, uma revolução a um novo mundo que se acostumou a parar de lutar. De se importar.
Contudo, Fanny Liatard e Jérémy Trouilh resolvem estender a trama com outros tons. A relação de amizade é impressa com uma narrativa de diversão mais palatável (se fechando em zonas de conforto), de alegria desmedida, quase adolescente. E/ou os gatilhos comuns de burlar a segurança de entrada no prédio. “Edifício Gagarine” torna sua condução mais ingênua. Naif. Tentando muitas vezes “retirar leite de pedra” para continuar com seus instantes pincelados. Só que no meio, ainda conseguimos encontrar a essência metáfora, como na cena, que talvez resuma o filme, de Yuri e da garota que ele gosta subirem para contemplar o plano geral do prédio. Nosso protagonista aprende ali que para subir precisa vencer os medos. Que não é fácil ir para o céu. Concluindo, “Edifício Gagarine” continua e, ao evocar a fantasia alucinógena, consegue traduzir a experiência etérea celestial. Um que de “Na Natureza Selvagem”, de Sean Penn, com pitadas criativas mais amadoras de diretores que estão começando a construir seus “Gagarine” cinematográficos.