Doente de Mim Mesma
Ferida Narcísica
Por João Lanari Bo
Festival de Cannes 2022
“Doente de Mim Mesma” – se a verdade é a adequação da coisa com o intelecto, como dizem os filósofos, o título não poderia ser mais verdadeiro para o longa que o norueguês Kristoffer Borgli dirigiu em 2022. Em norueguês, é simplesmente “Menina doente”: alguém teve a feliz ideia de nomear, em inglês, “Sick of myself”, de onde saiu o título em português. Pois Signe (Kristine Kujath Thorp, excelente), a principal personagem, é um caso de narcisismo elevado a não-sei-quantas-potências, um nível tal de necessidade de atrair a atenção sobre si mesma que desafia qualquer parâmetro psicanalítico – se o narcisismo é uma atividade autoerótica, como dizia o velho Freud, a obsessão de Signe sobe um degrau e torna-se automutilação. Tudo isso, bem entendido, com humor e sofrimento.
Uma personagem dessas faz com que os gêneros cinematográficos se misturem – talvez tenha sido essa a estratégia do cineasta. Seria “Doente de Mim Mesma” um drama psicológico? Uma comédia ácida, desconfortável? Uma fantasia alucinatória? Uma crítica ao marketing emanado do fashion way of life que impregna nosso imaginário? Ou ainda, um filme grotesco, um freak-show, no limite um filme de terror, tipo humanos que se transformam em lobisomens?
Pode ser cada um deles a cada tomada, ou todos eles, um código narrativo encravado e derretido no escuro do inconsciente dos espectadores. O inconsciente de Signe, por seu turno, começa sua escalada patológica em algum lugar entre as três grandes feridas narcísicas da humanidade, ainda segundo Freud: orgulho desmesurado, gigantesca autoestima e insuperável amor-próprio. Atormentada pelo sucesso do namorado, Thomas – artista também egocêntrico, como se espera dos artistas, embriagado com suas instalações de cadeiras roubadas – ela entra numa espiral neurótica com um acelerador inaudito, uma droga russa chamada Lidexol que causa erupções cutâneas extremas, coloridas e repulsivas. Entusiasmada com as fotos que viu na internet de usuários afetados pelo produto, corre ao seu dealer – dois cliques na dark web e logo o pacote chega pelo Correio.
Contar uma história dessas, fazer com que essa loucura se interiorize na personagem – e ao mesmo tempo manter acesa a empatia do público por esse projeto esbugalhado – era um desafio. “Doente de Mim Mesma” cumpre o objetivo, aos trancos e barrancos. No início, antes do fatídico Lidexol, ela salva a vida de alguém que passava na cafeteria onde trabalhava, mordida por um cachorro na garganta: o papel de samaritana corajosa pode gerar admiração, em Signe gera uma espécie de gozo pela súbita notoriedade. Em um jantar com Thomas e convidados depois do vernissage do namorado, ela improvisa e simula um ataque de alergia a nozes – um acesso de tosse e a garganta fechada provocam comoção geral. Ela exulta, e a audiência sorri.
Nada como o deleite estimulado pelo conforto e simpatia dos que estão em volta. Aí mora o perigo: pode tornar-se um vício, como se fora uma droga pesada que captura o desejo de quem se se deixa levar por uma sensação inebriante. Entram em cena os efeitos perversos do Lidexol, que vão impactando a pele diáfana de Signe: artérias manchadas brotando no rosto, no pescoço; erupções avermelhadas, sulcos se formando aleatoriamente; como nos filmes de terror de personagens que se transformam, ela é uma vítima-heroína, malgrado a repugnância da aparência (ou também, em virtude da repugnância da aparência). A superfície esburacada da pele de Signe detona a ação dramática, para o bem e para o mal.
Talvez um modo curioso e estimulante de situar “Doente de Mim Mesma” seja aplicar uma leitura háptica ao filme – o adjetivo háptico significa “relativo ao tato”, “sinônimo de tátil”. A pesquisadora Laura Marks escreveu bastante sob esse prisma: para ela, público e o filme são dois corpos distintos colocados um em frente ao outro; na visualização tátil, o olho se comporta exatamente como o órgão do tato. Nossa absorção do conteúdo audiovisual vai além da imagem e som, é multissensorial: o filme é como um tipo de pele palpável que pode ser experimentada através dos olhos. Ao confrontar o rosto desfigurado de Signe – um exercício artístico de make-up – sentimos tactilmente a imagem, que desencadeia percepções inesperadas, para além da observação convencional.
Certamente não é a primeira vez que alguém utiliza o recurso – a novidade pode estar na motivação que sustenta a personagem, que configura uma construção peculiar de direção. Afinal, se grotesco é o que se presta ao riso ou à repulsa por seu aspecto inverossímil e bizarro, ele pode ser também real.
PS: no site do Lidexol, consta um disclaimer onde se lê: “Por que um filme chamado “Doente de Mim Mesma” está deturpando completamente nossa marca?”