Mostra Um Curta Por Dia Marco mes 9

Dizem Que os Cães Veem Coisas

A tradução do etéreo

Por Fabricio Duque

Dizem Que os Cães Veem Coisas

Talvez a maestria da Alumbramento seja mesmo sua incapacidade de se definir em gêneros e de se permitir plena liberdade criativa da experimentação. Seus filmes representam um exercício de linguagem que foge à regra até meso do cinema chamado alternativo. Em 2012, Guto Parente lança “Dizem Que os Cães Veem Coisas”, filme criado a partir do conto homônimo do Moreira Campos, contista brasileiro considerado um dos mais importantes do gênero no país.

Para o ensaísta Sânzio de Azevedo, a obra do escritor cearense situa-se, principalmente, “no campo do conto psicológico, na linhagem de Chekov e Machado de Assis, sem contudo deixar de lado o conto regionalista”. E é exatamente essa atmosfera que seu realizador quer traduzir em imagens.

“Dizem Que os Cães Veem Coisas” é uma epifania. Um filme sensorial, de percepção etérea sobre as coisas. Os momentos são conduzidos pela espera de algo. Uma iminência. Um presságio. Uma pausa na fenda do tempo. Quase uma metafísica canina, porque acredita que os cães possuem um senso aguçado de perceber mudanças, como premonições. E que pela ideia daqui com rock metal (“Freedom”, do Rage Against The Machine) e visão de efeito psicodélico.

O curta-metragem também se comporta como uma crítica de costumes à sociedade “burguesa” (uma representação da classe média alta), que, por sua vez, acontece por família, que compartilha suas idiossincrasias, seus gostos, suas hipocrisias e suas divisões características em núcleos. Como a de uma novela. Há as socialites, que “limita” o espaço da criança como se fosse um animal. Há o grupo do violão. Há os jovens tomando sol e jogando vôlei com seus corpos torneados (causando desejos nos mais “experientes”). Há as crianças que continuam na diversão da piscina. Há os apaixonados. Os empregados. E há os que não se encaixam. Que bebem muito para fugir da realidade vivenciada no momento.

“Dizem Que os Cães Veem Coisas” é sobre o que acontece durante um almoço-festa de família. Suas aparências e suas verdades. Suas invisibilidades e a estranheza de uma felicidade desmedida que se desenterra por afinidade e memórias afetivas. Com um que de “O Pântano” (2001), de Lucrecia Martel, acoplado à organicidade estética do coletivo, o filme é uma experiência-permissão. De contemplar e concretizar o abstrato.

Marcelo Ikeda, em seu livro “Fissuras e Fronteiras”, escreve que é uma “paródia-exagero Kitsch” em suas “ambiguidades, paradoxos e a catarse simbólica de uma morte anunciada”. Sim, o filme, como já foi dito, é uma exposição da crueldade de um “sistema máquina”, explícito quando as moscas rondam, com violência e atitude, a mesa de comida e quando o rock é trocado pela popular música brega de Falcão em “Um Bodegueiro na Fiec”, que abraça as palavras de Cazuza em “Burguesia” e/ou em “Alô, Alô, Marciano”, de Elis Regina. “Eu sei que a burguesia fede, mas tem dinheiro pra comprar perfume”.

“Dizem Que os Cães Veem Coisas” consegue ir além. E apesar de Ikeda focar suas análises mais no que se vê do que se infere (buscando uma definição-tradução definitiva), esta é uma alegoria realista da comercialização da felicidade. E, ainda que uma tragédia se instaure, todos estão na verdade reverberando internamente sem demonstrar expressões uma das músicas de Chico Buarque (“morreu na contramão atravessando o tráfego” em “Construção”). Mas não é claro. E mais um vez uma inferência. Como toda a sensação ofertada e objetivada do curta-metragem.

Nós somos imersos na despretensão da criação. Na desconstrução da ideia. Em uma utopia fora de tom e realidade. Um passeio intimista e interno. Um estudo de caso para entender o geral. Compartilhamos fragmentos de seres que se comportam exatamente como humanos. Que, egoístas, correm para se alimentar antes de todos. Recentemente entrou no catálogo da Netflix o filme “O Poço”, de Galder Gaztelu-Urrutia, que consegue explicar neste os simbolismos e “pistas” utilizadas. Um filme único com múltiplas camadas peremptórias, que descortina a necessidade de transformar tudo em padrões caixas de ser.

“Dizem Que os Cães Veem Coisas” é um filme, literalmente, de família e de amigos. Que mesmo vivendo o ambiente que criticam aceitaram participar de uma terapia sócio-comportamental. Sim, talvez não tivessem noção. Talvez. Mas a mensagem foi transmitida. Clara, hostil, subjetiva e de morbidade existencial. Um fragmento de tempo apenas.

4 Nota do Crítico 5 1

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