Mostra Um Curta Por Dia 2025

Deus Tem Aids

Humanização contra estigmas

Por Vitor Velloso

Festival Olhar de Cinema 2021

Deus Tem Aids

Dirigido por Gustavo Vinagre e Fábio Leal, “Deus tem Aids” é um importante retrato de como as pessoas que convivem com HIV no Brasil são estigmatizadas, marginalizadas e, por vezes, ignoradas pelo Estado. Parte central do projeto é a união de depoimentos que relatam como é viver em um país onde morrem 12 mil pessoas por ano, vítimas de HIV, sendo que todas elas “são evitáveis”, nas palavras de um personagem do filme. 

Contudo, se o documentário trabalha com essa importante representação de uma parcela da sociedade brasileira que não costuma aparecer nas telas, parte do mérito está na maneira como o longa encontra uma forma de tratar um aspecto performático, a partir de corpos que estão convivendo permanentemente com o vírus, sem que isso necessariamente afete o seu cotidiano. Assim, a partir dos discursos políticos e pessoais de cada entrevistado, é possível compreender o enorme trabalho de cada um em tentar desconstruir determinados simbolismos que foram disseminados pela mídia de forma preconceituosa e criminosa. Não por acaso, parte das performances procura retirar os rótulos impostos à sociedade, desde o esperma até uma votação em urnas que decide, pela opinião do público, quem no palco convive com HIV. 

“Deus tem Aids” não é tão ambicioso a ponto de procurar traçar um panorama histórico total da história do vírus no Brasil, mas consegue ser didático a partir de determinados depoimentos, para que o espectador possa compreender como a sociabilidade é modificada pelo enraizamento do preconceito, tanto por culpa da comunidade médica, da mídia e do próprio Estado. Mas essa proposta funciona como um retrato intimista de cada personagem, de tal forma que podemos escutar suas angústias do presente e traumas do passado, sem que haja uma espécie de resolução formulaica da obra. Isso permite uma nova abordagem para o documentário, pois não há um compromisso que extrapole os próprios discursos dos atores sociais ali presentes. Aliás, tal perspectiva permite aos diretores trabalharem com a questão “HIV” como um fato social, sem impor uma leitura organicista dos diferentes problemas que surgem a partir da reflexão deste fato.

Apesar de Gustavo Vinagre estar caminhando por um estilo cinematográfico distinto do apresentado em “Deus tem Aids”, sua linguagem é particularmente adaptável para cada projeto e em seu documentário atual, podemos ver a face dos retratos intimistas se desdobrar a partir de temáticas que são comuns à sua filmografia, desde as entrevistas acontecendo em locais privados de seus personagens, até a leitura de mensagens de grande importância particular. A partir destas escolhas, a dialética entre o particular-geral passa a desempenhar uma função importante para uma montagem de um projeto que possui histórias tão distintas, cujo tema central está exposto na fala de cada um. 

Em alguma medida, é possível partir para uma série de discussões distintas a partir das questões levantadas na película, desde a necessidade de manifestações a partir dos corpos portadores de HIV, desde performances artísticas e sociais, até mesmo uma prática política militante contra o preconceito e desmarginalização dessas vidas. Sem dissociar as duas coisas, é possível que a condução conjunta de Fábio Legal e Gustavo Vinagre tenha equilibrado os diferentes estilos dos diretores à uma síntese verdadeiramente satisfatória, pois funciona como um filme que reconhece seu objeto centralizador nos discursos dos personagens, não necessariamente no vírus. Tal preocupação com os atores sociais, acima de qualquer outra questão que atravessa o filme, permite uma grande discussão social que vai se avolumando e abrindo margem para uma série de discussões pós-sessão. 

“Deus tem Aids” abre possibilidades infinitas de desdobramentos discursivos. Só por isso, seria uma obra de destaque no documentário brasileiro contemporâneo, que tem alguma dificuldade de ampliar os debates para um tom geral da sociedade brasileira. Ainda que possa ter altos e baixos durante a projeção, a grande questão é reconhecer que a temática é política, social, econômica e não desumaniza ninguém como um dado, um número. É um filme sobre pessoas, corpos, lutas, angústias e traumas. 

4 Nota do Crítico 5 1

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