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Desejo e Ambição

Trouble every day

Por João Lanari Bo

Reserva Imovision

Desejo e Ambição

Desejo e Ambição”, de 2001: o que levou os distribuidores do filme de Claire Denis no Brasil a escolher um título tão pífio, tão óbvio? Que sejam convocados os filósofos da linguagem para desvendar o imaginário tacanho dos pretensos comerciantes da imagem! Claro, o que prevaleceu foi o desejo (este sim, um desejo) de enquadrar um trabalho inóspito e agressivo dentro de categorias literárias degastadas e reconfortantes. “Trouble Every day”, o título original, tem uma tacada inapreensível para os vassalos do alfabeto, certamente. Pois o filme de Denis, ensanguentado e irascível, é mesmo de difícil assimilação, mesmo para críticos renomados – Jim Hoberman escreveu dois anos depois do lançamento que tudo aquilo era “propositalmente chocante em seu sangue erotizado, embora involuntariamente maçante em sua falta de frissons poéticos”. Proposital e involuntário, Hoberman atirou no que viu e acertou no que não viu: “Trouble Every day” é uma combinatória de pulsões e loucura, ganância e canibalismo, organizadas de tal maneira que tocam naquele âmago do espectador em que a repulsa se sobrepõe à lascívia e vice-versa. Se alguém espera “frissons poéticos” desse mergulho abissal, é melhor mudar de canal.

“Morei na África e tive uma infância itinerante, mudava a cada dois anos… mesmo quando estávamos na França rastreamos todo o território com a família…com meu pai até viajar pela França era exótico”. Denis é herdeira desse colonialismo francês esquizofrênico, que se esgotou em ficções fantasiosas e muitas vezes dramáticas. Em “Chocolate”, seu longa de estreia, uma mulher francesa retorna à sua casa de infância nos Camarões, antigo posto avançado colonial, onde é inundada de lembranças, particularmente de sua empregada. Em “Beau Travail”, talvez seu projeto mais bem sucedido, um ex-oficial da Legião Estrangeira relembra sua vida liderando tropas em Djibouti, também conhecida como Somália francesa. Em ambos, sobressai a beleza dos corpos,  e o modo próximo e perturbador de registrar esses corpos, belos e (des)colonizados. A sensualidade em “Desejo e Ambição” transmuta-se em visão violenta e totalmente perturbadora do desejo carnal como uma forma de canibalismo: Coré, fantasticamente vivida pela inquietante Beatrice Dalle, sofre de uma doença que a obriga a literalmente devorar seus amantes. Aqui também, os mesmos planos próximos caros à realizadora, cores (quase) saturadas, vermelho do sangue e do pôr do sol: e uma pista sonora que subsiste discreta, mas que é fundamental para a sensação de mal-estar que permeia a narrativa. Não seria exagero assistir ao filme com fones de ouvido, para uma melhor, digamos, fruição.

Estamos, afinal, em uma ficção científica de horror: o gênero é enfastiado, mas não impediu Claire e seu roteirista habitual Jean-Pol Fargeau de subordinar a coesão narrativa ao mood e à textura, à visão e ao som, tal como nos filmes anteriores, sempre apoiados na estupenda fotógrafa Agnès Godard. Logo de cara, Shane (Vincent Gallo), cientista de uma big pharma, debulha-se com a visão delirante da esposa banhada de sangue: ele circulou pela Guiana tropical em busca de curas para “doenças nervosas, dor, doenças mentais e problemas de libido”. Foi a Paris para lua de mel e para encontrar Leo, o cientista heterodoxo desses experimentos. Cenas frias do laboratório clínico onde trabalhava Leo – jalecos brancos imaculados usados pelos pesquisadores que fatiam e mapeiam cérebros – antecipam cenários sanguíneos, associados ao êxtase sexual e febril. Shane erra pela cidade e esquece da esposa, masturba-se no banheiro do hotel e cinde sua subjetividade – torna-se um sujeito partido. Poucos diálogos, ângulos e enquadramentos fechados, o resultado é uma secura cinematográfica que entra pelos poros. Prepare suas vísceras, como dizia Vincent Price.

Desejo e Ambição”, a despeito de seu estilo gore – subgênero do cinema de terror que, deliberadamente, se concentra em representações gráficas de sangue e violência, com interesse na vulnerabilidade do corpo humano e na sua teatral mutilação – é um filme lânguido, raramente temperamental, preciso na percepção sobre o comportamento humano e desumano. A dramaturgia é minimalista: Claire Denis investe mais na linguagem háptica, conseguindo em última análise fazer corpo e pele dizerem muito sem o excessivo discurso verbal. O adjetivo háptico vem do grego e significa “relativo ao tato”, “próprio para tocar, sensível ao tato”: os dispositivos de interações táteis estão cada vez mais presentes em nosso dia a dia. Tecle a tela do seu celular e bem-vindo ao cinema háptico.

4 Nota do Crítico 5 1

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