Delírio
O espaço das memórias
Por Vitor Velloso
Mostra Internacional de Cinema de São Paulo 2024
Construído como um drama familiar que flerta com elementos do terror, “Delírio”, dirigido por Alexandra Latishev Salazar, transita entre duas perspectivas de construção de tensão, unidas pela presença do fantasma de um homem. Nesse sentido, é interessante observar como o roteiro, assinado pela própria diretora, consegue articular duas dimensões distintas em torno desse mesmo elemento narrativo: encara-o de forma semelhante, mas, com pequenas variações no desenho sonoro e na representação visual, faz com que os gêneros se intercalem com relativa fluidez.
Contudo, o filme, distribuído pela Filmes do Estação, encontra grande dificuldade em estabelecer um ritmo capaz de desenvolver essas ideias, parecendo não conseguir sair do lugar em muitas de suas investidas. Por exemplo, a proposta de estruturar um recorte espacial, a casa, como espaço de memórias, traumas e entraves emocionais das três gerações de mulheres dessa família funciona bem, assim como a centralidade desse horror imaginável, não visto, que serve como ponto fixo de tensão constante. O problema é que “Delírio” acredita tanto em seu artifício que o leva até o fim, em um ciclo cansativo e particularmente entediante, já que não consegue se desvencilhar dos mesmos truques que geram algum grau de tensão nos primeiros minutos, mas que são reciclados até o último instante da projeção. É frustrante notar como o projeto parece recolher os cacos dessas investidas para ver se eles funcionarão novamente — pela milésima vez. Talvez a proposta do filme, ao menos do ponto de vista estético, não sustente um longa-metragem.
Porém, “Delírio” engendra um sentimento labiríntico, intencional, mas que acaba vitimizando o próprio desenvolvimento. À medida que toda a proposta estética, muito bem construída e fotografada por Esteban Chinchilla, se estabelece, essa beleza e tensão tornam-se lugar-comum, permitindo que as imagens apenas se retroalimentem, sem que haja um movimento propriamente dito. O resultado é um exercício formal que esgota rapidamente suas “experimentações” e já não encontra mais um propósito claro nessa perspectiva. Isso ocorre especialmente em razão de certa resistência do roteiro em abraçar o gênero do terror. O que, de fato, não seria necessário — porém, a indecisão entre dar um passo adiante ou não torna o processo bastante exaustivo. Aliás, a reta final do longa demonstra essa sensação de perda de sentido da construção repetitiva, decidindo apelar para signos já estabelecidos: uma figura que “retorna” (ainda que nunca tivesse efetivamente aparecido) para abraçar a dualidade fantasmagórica entre a assombração e o alento.
Nesse sentido, a montagem, assinada por Soledad Salfate, faz um grande esforço para dilatar o tempo em um campo de contemplação que permita funcionar enquanto apreciação — para além dessa tensão externa que cruza o projeto a todo momento. O resultado é uma montagem que permite respiros ao longo da projeção, não para o espectador, pois esse tem tempo de sobra, mas para as próprias ideias ali “estabelecidas”. Ou seja, na verdade, parte do trabalho de Salfate é adiar o inevitável: a ausência de uma conclusão, seja ela narrativa ou estética, pois apenas a dimensão dramática encontra um lugar aqui. Por outro lado, o trabalho de som, assinado por Nadine Voullième, é um dos grandes destaques e, junto com a fotografia, sustenta essa experiência para o espectador que conseguir embarcar na proposta. Aqueles que se perderem na resolução formal labiríntica terão um percurso difícil na última metade.
“Delírio” é um filme que tem boas ideias e até sabe desenvolvê-las até certo ponto, mas não consegue ir além da saturação inevitável de dispositivos e signos tão estabelecidos nos gêneros com que trabalha, dependendo majoritariamente do som para criar uma manutenção dessa tensão tão irregular ao longo da obra. A proposta de “estar” no terror sem “ser” um terror é bastante interessante — se fosse finalizada, o que, em alguma medida, nunca acontece — criando a sensação de um ciclo que não se fecha, por indecisão ou pelo desejo de transitar nessa linha tênue que conecta seus polos, algo que poderia ser feito com mais precisão. Aliás, dentro de uma perspectiva do realismo mágico, em que a tradição surge com um viés distinto, também interessante, parte de todas essas questões poderia ser resolvida dentro do projeto. O problema é que tanto o gênero quanto os dispositivos atravessam a mesma lógica de sempre: a inversão do realismo mágico. Ou seja, ele não parte da base concreta, mas da metafísica. Aqui, ele nasce do drama, mas nunca chega ao concreto de fato.


