DAU. Natasha
Sua rotina e seus amores
Por João Lanari Bo
Festival de Berlim 2020
No outro filme do Projeto DAU exibido no Festival de Berlim 2020, “DAU. Natasha”, a personagem principal, operária-garçonete, organiza a narrativa e atravessa o purgatório stalinista, do gozo à tortura. Encarnada por uma notável atriz não-profissional, constrói uma transição interna impecável, do rancor em relação à colega subalterna mais jovem e bonita ao enfrentamento e resignação da tortura sadomasoquista impetrada pelo diretor-militar, passando pelo flerte e sexo (também explícito) com o cientista-visitante francês.
A obsessão dos formuladores do Projeto DAU adquire com Natasha um contorno mais próximo às narrativas convencionais, começando pela duração, pouco mais de duas horas. Mas os toques de “reality show” estão presentes: até as piadas são dos tempos soviéticos – por exemplo: “o caviar é preto, o vinho é velho e o queijo está com bolor, que vida miserável!”, o que significa enfatizar, ironicamente, que os protagonistas estão se afundando no luxo dos padrões soviéticos, enquanto simulam uma reclamação. Mais uma vez, os atores não tinham roteiro e viviam seus papéis 24 horas por dia, monitorados o tempo todo, 7 dias por semana, por câmeras de vigilância. A ideia era alcançar a verossimilhança irrestrita preconizada pelo projeto. O método gerou uma atmosfera diferenciada no set, com cenas filmadas ininterruptamente, sempre em um take, contornando assim as práticas tradicionais de produção cinematográfica.
Em “DAU. Natasha”, o diretor Ilya Khrzhanovskiy extrapolou ao definir conceitualmente o projeto: segundo declarou ao The Guardian, “cidadãos soviéticos e participantes do DAU submeteram-se ao sistema totalitário de olhos abertos; hoje, parece que não percebemos isso”. Para ele, o sistema que nos controla é o celular. Dizemos: ‘Ótimo, comprei o novo iPhone ou qualquer outra coisa. Você comprou algo que o controla mais”. Os celulares sabem mais sobre nós do que nós mesmos, sublinhou. “Vivemos em um mundo transparente, mas não podemos aceitar isso”. Passamos de uma sociedade disciplinar, onde o controle era ativado por meio do confinamento dos sujeitos em instituições (escola, hospitais, presídios), para uma sociedade de controle, onde as ações que visam controlar nossas vidas desdobram-se de forma indelével: o totalitarismo soviético é o prenúncio do controle contemporâneo, microscópico, mas muito mais eficiente.
A luz em “DAU. Natasha” também é chapada, praticamente não há close, predominam os planos médios reality show, com os picos de intensidade dramática orbitando em torno de Natasha: a sequência da tortura sentimental/sexual, um entra e sai de salas despidas de adereços cenográficos, é um dos grandes momentos do cinema pós-soviético. O ritual da tortura torna-se um dispositivo de linguagem, verbal e não-verbal, que transcende ideologias e revela-se, no fim, um mecanismo de cooptação institucional de preservação do sistema paranoico de delações. Natasha assina a declaração e torna-se mais uma informante privilegiada dos hábitos e intimidades da classe de cientistas.
Seu pecado, entretanto, foi ceder ao francês, configurando a hipótese de que poderia ter sido cooptada pelas potências estrangeiras e passado a agir, em última análise, como uma espiã do inimigo capitalista. No auge do clima persecutório dos anos 30, nos expurgos stalinistas entre 1936 e 38, quando foram assassinadas entre 700 mil e 1 milhão de pessoas, este era um expediente frequente, acusação de espionagem em bases espúrias. Natasha-personagem concilia como pode a frustração afetiva-pessoal com a concretude do delírio conspiratório-estatal. Sua sobrevivência é uma incógnita, à luz do cardápio de punições imposto a ela pelo sistema.
O principal financiador do Projeto DAU foi Serguei Adoniev, engenheiro que ficou bilionário na transição da URSS para a Rússia capitalista nos anos 90 e passou a dedicar-se a iniciativas socioculturais. Adoniev naturalizou-se búlgaro, mas perdeu a cidadania em 2018 por problemas anteriores com os norte-americanos, ainda nos anos 90, aparentemente ligados a comércio internacional e tráfico de cocaína: em 2008, uma foto em cerimônia na sua empresa de telecomunicações flagrou Putin junto ao filantropo. Como outros oligarcas russos, investe em arte para inserir-se na ordem global da alta cultura, imaginária ou não, e sedimentar seu capital simbólico (são várias fundações e o jornal independente Novaya Gazeta). O output do Projeto, até agora, é assombroso: além dos dois filmes, “DAU. Degeneração” e “DAU. Natasha”, mais 9 já estão prontos, além de 4 minisséries para TV, cada uma com 3 episódios.
O projeto foi definido pelos idealizadores como um cruzamento “multifacetado” entre cinema, teatro, ciência, arte performática, religião, filosofia, literatura e arquitetura. “DAU. Natasha” é um experimento social e artístico – na mesma linha do experimento soviético. No limite, é algo que se poderia chamar de território da memória – individual, coletiva, histórica e artística.