Damas do Samba
Me perdoe, São Paulo!
Por Vitor Velloso
Festival do Rio 2013
O documentário “Damas do Samba” não vêm cumprir uma lacuna histórica específica da trajetória do gênero musical em questão, mas sim apresentar uma necessidade de reconhecimento das mulheres em meio a todo esse contexto. E faz isso a partir de duas frentes, uma de reparação de imagem, exemplo de Zicartola, destacando a figura de Dona Zica da imagem sempre agregada a Cartola, e a outra, a partir de uma questão ancestral que diz respeito ao próprio samba e a pele preta.
Novamente Susanna Lira dá destaque às mulheres que compõem a temática que trabalha, aqui elas não são fruto do assunto, mas sim o próprio eixo de debate. Esquecer o papel da mulher na História do samba, é negligenciar a origem do mesmo.
A montagem de “Damas do Samba” nos apresenta um mundo feminino multifacetado dentro do samba, conseguindo transitar entre os depoimentos das mulheres com organicidade, entre a retomada de Beth Carvalho, Alcione e Ivone Lara, e quem compõe o novo rosto do gênero. Além das escolas mirins, que iluminam toda uma geração que não está mais por vir, mas se faz presente desde já. E nessa perspectiva, uma fala em específico deixa claro que o trabalho cultural e memorial, não só do samba, mas como de uma historicidade e ancestralidade como um todo, vêm da educação. Assim, é importante que haja a renovação da abordagem.
Beth relembra a luta revolucionária que faz parte de todo o assunto em questão, de forma abrangente, no âmbito político e social. Não à toa, “Damas do Samba” abre um horizonte seccional da manifestação, as mulheres. Que como dito anteriormente, são inseparáveis da História e são linha de frente dessas mudanças. Cita inclusive sua música “Corda no Pescoço”, que falava diretamente sobre o Plano Cruzado. Nesse espectro, a Mangueira vêm como potência máxima de uma nova perspectiva, pois além de denunciar o totalitarismo genocida da política atual, dá nome a essas vítimas e põe o peso da ancestralidade no mesmo.
“Brasil, meu dengo
A Mangueira chegou
Com versos que o livro apagou
Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento
Tem sangue retinto pisado
Atrás do herói emoldurado
Mulheres, tamoios, mulatos
Eu quero um país que não está no retrato”- 2019
“Eu sou da Estação Primeira de Nazaré
Rosto negro, sangue índio, corpo de mulher
Moleque pelintra no buraco quente
Meu nome é Jesus da Gente Nasci de peito aberto, de punho cerrado
Meu pai carpinteiro, desempregado
Minha mãe é Maria das Dores Brasil”– 2020
O ato de recusa da Rainha, em não sambar, é revolucionário por si só, para além da obviedade da digressão da leitura dogmática e européia de que o salvador ou messias, é um homem branco. Aqui, Jesus nasceu na favela e é uma mulher negra que não samba, mas mantém a lágrima estampada no rosto. “Se Jesus voltasse, cês matava ele de novo”, diz um trecho de uma música, “Primavera Fascista”. Judas em terra brasileira ganha faixa presidencial, faz arminha com a mão e faz apologia ao estupro.
Susanna Lira em “Damas do Samba” consegue mais um retrato das Mulheres no Brasil, articulando com eficiência todas as relações políticas ali envolvidas, com a ancestralidade e o link direto com aquilo que temos de mais de contemporâneo, essa nova geração. Mas para além disso, consegue dar a dimensão da importância de todo o ato que envolve o samba, não para o país, mas para essas figuras femininas, ainda que de forma individual através das entrevistas, porém costurando isso com um tom coletivo que contamina a tela. E que consegue transmitir a força de cada uma, assim como suas influências na produção, de maneira ímpar.
Como um grande contraponto do discurso embaraçoso da secretaria especial de cultura, Regina Duarte, que minimizou a morte das vítimas da ditadura, canta e dança jingle da seleção (Pra frente Brasil), diz que não deve ser obituário das vítimas deste país (e aqui implico ao Brasil uma patologia que assassina todos que buscam lutar por ele) e que sempre recusou o feminismo, “Damas do Samba” demonstra que a mulher possui as rédeas dessa História tão renegada e que deve estar onde deseja. Ainda que haja uma tentativa de desmonte cultural, o brasil renega o “pum do palhaço” e a obsessão da secretaria por flatulências, e Susanna segue fazendo questão de traçar isso em uma carreira atenta e ativa.