Daddio
No limiar do desconhecido e da alteridade
Por Paula Hong
Festival do Rio 2024
O experimento de colocar duas pessoas num espaço confinado ou limitado as obriga, inevitavelmente, a interagir. O que se extrai dessa interação está fora do controle delas — algo pode dar muito errado ou muito certo. Em “Daddio”, Christy Hall explora as nuances na zona cinza entre esses dois polos, de modo a assegurar uma tensão sempre crescente com breves momentos de respiro no longo trajeto que Girlie (Dakota Johnson) faz do aeroporto até o seu apartamento, no taxi de Clark (Sean Penn).
A abordagem da conversa inicia-se com trivialidades. E embora exista uma divisória no carro que atesta convenções dos limites entre passageira e motorista, ela torna-se inútil, como se não estivesse ali, à medida que os assuntos abordados e explorados aproximam os dois. A tensão concentra-se exatamente nos temas, no fato de que o taxista, por qualquer razão que seja, faz perguntas que a dissecam — tanto para ele quanto para nós. Mas o verdadeiro raio-x que Clark faz de Girlie (este não é seu verdadeiro nome, ele nunca nos é revelado) advém dos longos anos de profissão, como ele mesmo justifica.
É no entusiasmo que o alimenta nessas trocas que Clark expõe experiências acumuladas ao longo dos anos como taxista; às vezes freando a sinceridade, escolhendo bem as palavras, outras vezes tomando para si a liberdade que a proximidade dos dois dá a ele. Assim ele também vai se desmembrando aos poucos, mostrando as facetas de sua personalidade: um homem que ao mesmo tempo tem muito o que falar, resguarda para si lados que não o colocam sob uma luz bonita aos olhos de Girlie e do público. E talvez, por isso mesmo, o roteiro consegue colocá-lo como essa figura com camadas convergentes e divergentes.
No banco de trás, Girlie parece presa e encurralada. Isso é evidenciado pelos ângulos da câmera que a captura pela diagonal ou quando, bem perto de seu rosto, mostra a apreensão com as trocas de mensagens com um homem que mais tarde é revelado ser seu amante; casado e com filhos, claro. Porém, Clark tem maior influência na crescente mudança de percepção da vida que leva. Talvez pela experiência, talvez pela diferença de idade, mas Clark passa a ser a pessoa que desconfigura certezas pré construídas da vida de Girlie. O homem, até então estranho, oferece uma solicitude de lições e conselhos que beiram a uma palestra que pretendem-se consecutivas evidências da mais pura verdade da vida: os homens são assim, e este é o seu papel nesta relação extraconjugal. O desconforto de estar na companhia de dois homens — um desconhecido dentro do carro, outro no celular — é pivô desde o começo. Em “Daddio”, é como se Clark fosse porta voz dos homens, em especial aquele com que Girlie se relaciona: homem mais velho, bem estabelecido, com um emprego importante e uma família. Mesmo não tendo aquilo tudo, Clark mostra-se mais consciente de todas as engrenagens que giram e sustentam as aparências desse tipo de vida; de novo usando a experiência como taxista e exímio leitor de pessoas a seu favor. Descasca aquilo que Girlie achava ser, coloca abaixo e apoiado na verdade crua e dura da vida, faz Girlie duvidar de tudo o que achava.
Com isso, Hall constroi, com “Daddio”, uma relação entre desconhecidos com tempo determinado: enquanto a corrida durar. A intenção de explorar trocas que deixam marcas em alguém que (possivelmente) jamais encontrará novamente mostra-se desequilibrada no decorrer do longa-metragem. As passagens do filme que cinematograficamente os colocam em pé de igualdade pela altura e ângulo da câmera causam desequilíbrio em relação ao texto, ao roteiro, uma vez que Girlie parece ser responsável por absorver o que Clark lhe despeja, sobretudo quando desmonta e remonta sua visão sobre relacionamento e expectativas entre homens e mulheres, numa espécie de atestado machista e misógino muito bem conhecido e disseminado de que homens serão homens, não importa o quê, e que mulheres sempre serão governadas pelos sentimentos, traçando essa diferença primordial entre eles e elas.
É por intermédio da dinâmica entre Girlie e Clark que Christy Hall estreia na direção com “Daddio”. Os temas, embora bem já difundidos e amplamente abordados nas discussões que vez ou outra, se não com mais frequência no cinema contemporâneo, trazem para superfície do que há de mais incrustado no pensamento ocidental são tratados pela diretora com certa superficialidade, sem conseguir alcançar ou explorar no acesso que nos dá sobre seus personagens maior maturidade ou uma visão mais sóbria sobre a convivência com as diferenças e as impressões que elas nos deixam, mesmo que vivenciadas apenas uma vez, com algum desconhecido.