Crônica de uma Relação Passageira
Perdão pelo meu francês
Por Vitor Velloso
Festival de Cannes 2022
Muito se fala sobre como o crítico de cinema deve se despir de preconceitos em relação a uma determinada obra para poder apreciá-la na íntegra, ou de como a crítica deve ser “objetiva”, apesar das características subjetivas e de todo o cabedal que envolve o(a) profissional em si. Apesar de esse debate ser frequente e repleto de meias-verdades, existe um caráter cínico nesse discurso. A comédia romântica niilista francesa, que transita entre o humor, a paixão, a sinceridade acerca do sexo e das relações, enquanto apresenta a insegurança de seus personagens, não é exatamente o tipo de cinema que mais agrada a este que vos escreve. Portanto, “Crônica de uma Relação Passageira”, de Emmanuel Mouret, é uma obra que, em muitos momentos, tornou-se desgastante de acompanhar, criando uma experiência aborrecida pelo simples fato de haver uma incompatibilidade entre o longa e… eu.
Realizada essa mea culpa, carregada de alguma sinceridade necessária para o texto, é de se admirar a forma como Mouret traça a leveza da dinâmica dos personagens como um contraponto para seus diálogos e atuações de Sandrine Kiberlain (Charlotte) e Vincent Macaigne (Simon), criando uma complexa encenação dentro da simplicidade narrativa. Os protagonistas carregam em si os conflitos (ou a ausência deles) dramáticos que movem essa história, transformando essa obra em algo tão despido de julgamentos morais quanto de qualquer autoflagelação pela impossibilidade de se ter segurança, seja em uma relação, seja em sentimentos particulares. Nesse sentido, o arrastado desenvolvimento de “Crônica de uma Relação Passageira” ganha novo fôlego na química quase sobrenatural entre os dois atores, que, com a fotografia de Laurent Desmet, parecem flutuar pelas paisagens francesas com uma leveza quase tola — ainda que nunca cheguem a esse ponto. Afinal, entre os diálogos mais prosaicos, há momentos verdadeiramente dramáticos, como em uma cena em que Simon faz uma súplica diante da falta de ação de um determinado personagem, reconhecendo sua própria inércia e a consciência ambígua dessa passividade na relação. Pode parecer confuso, mas não quero revelar o diálogo para não estragar a experiência de quem ainda não teve contato com a obra.
A montagem de Martial Salomon conduz o espectador por cada novo espaço ou situação, garantindo fluidez entre os planos — uma dinâmica importante para não perder o público ao longo da projeção, já que a quantidade de diálogos pode realmente ser exaustiva. Inegavelmente, esse aspecto é particularmente pessoal, mas a longa sessão de terapia mútua, com uma suposta leveza sempre carregada de um peso que atua fantasmagoricamente sobre os dramas individuais e sobre a relação em si, cria uma sensação de esgotamento à medida que nos aproximamos do final do filme. Não por acaso, à medida que novos elementos eram inseridos nessa errática relação, mais o cansaço tomava conta e menos interesse o projeto conseguia gerar, criando um ciclo vicioso que me fez olhar o relógio repetidas vezes.
Assim, é compreensível que, para os apreciadores deste tipo de cinema, “Crônica de uma Relação Passageira” — e o cinema de Mouret em geral —, boa parte do que não funcionou em um nível individual possa funcionar perfeitamente e da melhor forma possível. Inclusive os diálogos complexos, os encontros em museus e livrarias… aliás, uma bela definição de cinema francês, ao menos em termos de cenários e contextos, é o filme de Mouret. Não por acaso, a temática da amante soa tão natural e desprovida da carga moral presente em outras cinematografias. Contudo, nesse vai e vem entre os personagens, que parecem se distanciar a cada novo avanço mútuo ou individual, o projeto perdeu meu interesse diante do crescente descomprometimento com o drama e o romance apresentados.
Por essa razão, iniciei a crítica com uma mea culpa e encerro alentando os apreciadores do filme: este texto é mais uma confissão do que uma crítica. É possível reconhecer os méritos de um longa tão convincente em sua estrutura e bem resolvido em sua ambiguidade dramática. Ainda assim, minha dificuldade em me conectar com “Crônica de uma Relação Passageira” proporcionou drásticos vácuos na experiência, revelando minha falha com a obra e não o contrário. A intenção do filme de subverter parte das comédias românticas tradicionais é um tópico realmente interessante, que, com um espectador mais interessado, deve funcionar muito bem.