Tesnota
Gira o Mundo Cão
Por Fabricio Duque
Durante o Festival de Cannes 2017
Exibido no Festival de Cannes 2017, na mostra Un Certain Regard, “Tesnota”, do estreante diretor russo Kantemir Balagov, filme que venceu o Prêmio Fipresci da Crítica Internacional por seu “cinema completo”, pode ser comparado a um “Romeu e Julieta” dos tempos atuais. É sobre uma comunidade fechada em um mundo dividido e decadente, em que o orgulho define a regra, afeta vidas e desestrutura relações, padronizando afetos (apenas os aceitáveis) e as possibilidades do amar. É cinema bruto de um editado mundo cão. De uma oficina, suja e engraxada por natureza.
“Tesnota” é um filme movimento, que começa na ação, indicando um meio de uma consequência já iniciada. Seus personagens vivem resignados em suas crenças e em suas vidas organicamente resignadas. A câmera próxima e não convencional (de estrutura mosca, que capta a naturalidade nua e crua) quer a essência máxima da espontaneidade quando os coloca fora de planos, como se transcendessem a própria ficção documentada em suas ruas e vielas de uma Rússia em 1998. O longa-metragem conduz o espectador pela sutileza, pela normatização dos instantes, por sinais, olhares, detalhes e por cúmplices silêncios e brutas brincadeiras aceitáveis (características típicas do meio em que se vive). É uma comunidade passional e humanizada, que sobrevive com o que pode e com o que consegue, entre tensões sexuais e carinhos incondicionais.
Há um respeito ao próximo, principalmente ao mais idoso (a mãe, por exemplo). Um personagem chega a mascar chiclete para esconder o cheiro do cigarro. E ou outra que muda a roupa de recatada para “descolada” (para adentrar um universo mais informal e ilícito). Eles são típicos seres-humanos, expondo preconceitos enraizados, ofensas xenófobas e irônicas picardias em um ingênuo e inocente tom de chacota. Todos se entendem, frequentando sem questionar a regras, procedimentos e festas de família e de noivado (que é representado por brincos – não por alianças, pelo beijo no rosto e pela dança Polka).
Aos poucos, sem correr, como se estivéssemos na narrativa do filme “O Poderoso Chefão”, de Francis Ford Coppola, a história é desenvolvida, sem explicações demasiadas, e sim pelo passeio intimista, e que, vez ou outra, um simples esbarro, muda todo o seguimento, tornando-se um filme coral. Nós não só entramos na vida deles, como desnudamos seus segredos e seus contrabandos. Ah, e também descobrimos o gosto por Snickers. São Judeus versus Kabardians (Cabardinhos). Gentileza contra amoralidade (a necessidade da sobrevivência sem comida).
Em Nalchik, no sul da Rússia, uma família experimenta momentos de explosiva tensão: o filho caçula não volta para casa junto com a noiva, desaparecidos sem nenhuma explicação. No dia seguinte o recebimento de uma carta pedindo alto resgate confirma o sequestro e a família começa então a abrir mão de todos os bens materiais para tê-los de volta. Dramas e mais dramas sucedem-se, livres, estendidos e sem dinheiro. Todos vivem em comunidade, que decide como e quando fazer. Eles pertecem a uma “tribo”. A um segmento social. Porém sempre alguém desestrutura o sistema e consegue quebrar “mandamentos”, atravessando a “fronteira do amor” para curtir sem limites com bebidas, cigarros, drogas e excessivamente passional. Discussões alteradas ou apenas ouvidas (pelo efeito psicotrópico), referências a Boris Yeltsin, torturas e violência em close na televisão, tudo estimula a imatura força dos jovens, que acreditam que a rebelião surtirá efeito.
Ilana (a atriz Darya Zhovner) é judia, mais rebelde e mais perdida também, permanecendo na “linha de batalha” e causando “uma bagunça”. Saída de órbita, desordem, equilíbrio, venda da própria filha. É um filme sobre “consertar” o próprio eu (“Go fix yourself up”). São “boa gente”, mas precisam de dinheiro para viver e para “salvar o Titanic”. A mensagem que nos passa é a de que “ricos podem comprar tudo, até o amor”. E que é melhor se salvar em outro lugar que passar fome junto aos entes familiares. São práticos, realistas, objetivos, oportunistas e mercenários. Um resumo adjetivado da selvageria do ser-humano, que se define pela racionalidade e pela característica de se reconhecer no espelho.
“Tesnota” é o mundo cão. O submundo que Victor Hugo já abordou em “Os Miseráveis”. São pobres, à margem de uma sociedade doente que os afasta e os exclui, gerando a bola de neve da invisibilidade da invisibilidade. Viver, morrer, continuar, tanto faz. As esperanças já foram definhadas, e agora só resta a apatia de continuar até o fim do caminho chegar.