Rifle

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Um faroeste moderno que une John Ford e Abbas Kiarostami

Por Fabricio Duque


É expressiva e já inevitável uma tendência mundial do novo cinema que é realizado atualmente ao hibridismo. Cada vez o documentário assalta e se aglutina à ficção, e vice-versa, estreitando o caminho entre realidade e criação da imaginação. Os novos diretores buscam este gênero voltado ao naturalismo das ações cotidianas mais espontâneas de pessoas comuns. O realizador Davi Pretto (de “Castanha”, que com este também quebra o paradigma da definição absoluta limitada) é um destes seguidores por construir instantes contemplativos estendidos de personagens não atores (“que aprenderam a ser”, pelas palavras de Davi – “muitos que ainda não tinham ido ao cinema”) transmutados em encenar vidas existências semelhantes.

Em seu mais recente longa-metragem, “Rifle”, premiado como Melhor Filme pelo Júri da Crítica, Melhor Roteiro e Melhor Desenho de Som no Festival de Brasília 2016, e que integra a mostra competitiva da VIII Semana dos Realizadores, é uma ode à cinefilia por referenciar, não propositalmente, mesmo que no final do processo esteja explícito e com os devidos créditos pós-filme, John Ford, e “Rastros de Ódio”, com as obras tempo narrativas de Abbas Kiarostami (“O cinema dentro do carro sempre voltava”). Aqui, nós temos faroeste moderno (“inerente ao personagem mítico que vivencia conflito de terras, território e identidade”), à moda iraniana, filmado em Cinescope, uma lente de projeção anamórfica, que gera uma imagem “esticada” para recriar a relação de aspecto original na tela de visualização.

“Rifle” é sobre “personagens em fuga, de ruptura”. Um filme que se desenvolve na própria “estrada” por causa do processo de pesquisa de seu diretor, que levou cinco anos lendo e relendo o roteiro. O que vemos é a transição dos silêncios rurais (uma timidez solitária resignada) para a agitação verborrágica da cidade (em que vazios sonoros são preenchidos com barulhos). Na fazenda, a contemplação sem pressa e a presença da natureza constroem a naturalidade bucólica de tempo pausado (e perdido) da vida interiorana como cuidar das ovelhas, proteger as cercas. A reunião de família acalenta a memória (o passado é contado pelas fotografias antigas, pessoas e caseiras). A falta de perspectiva de trabalho acalma o próprio querer que se desdobra e encontra “a cabeça vazia”, que é “oficina do diabo”.

Dione (o agora ator, irretocável em suas expressões silenciosas, Dione Ávila de Oliveira) é um jovem com hábitos estranhos, que vive isolado com sua família em uma região rural e remota. Alimenta a própria solidão, ouve os causos contados de tragédias ouvidas do imaginário popular, e para defender seu território, que está sendo “rondado” por um rico proprietário (“eles ficam sempre vindo” e o “serviço vai apocar”), que tenta comprar a pequena propriedade onde ele e sua família vivem, começa então a carregar sempre um rifle. “Ficar rico para que?”, questiona-se. A paz ameaçada acorda a desconfiança e assim se aproxima das características do “progresso” da cidade grande. Lá, no recanto “pacato”, o barulho do vento é potencializado e a insônia sentida.

O longa-metragem estimula camadas de metáfora social. E pela câmera que faz do espectador um intruso, um bisbilhoteiro, que por sua vez observa o voyeurismo de nosso protagonista, cujo passatempo é olhar vidas e cotidianos alheios. E também pela fotografia que insere o que se vê em uma envelhecida imagem proposital pelo reflexo dos raios de sol. E os ruídos exacerbados que abafam os diálogos. As ações cotidianas (a televisão com sinal ruim, os “bicos” de trabalho) são desembocadas em sua psicopatia de atirar a esmo e sem sentido. Um vazio a ser preenchido? Passatempo? Diversão? Prazer? Projeção mental? Imaginando o mal da vingança (uma solução real fatalista)? Loucura?

Contudo, “Rifle” estende demasiadamente seu conceito, perdendo ritmo, e repetindo ações encenadas, que complementam a duração do filme. Outro fator é inevitável: o anti-naturalismo quando se trabalha com não atores (com exceção de “Ela Volta na Quinta”, de André Novais). Nosso personagem principal transforma-se em mambembe, errante, sem rumo, distante, vazio e gratuito em sua trajetória por lugarejos fantasmas e de visual deslumbrante (irretocável a direção de fotografia) que conjuga a luz e sombra da própria natureza. Concluindo, um filme que busca a cinefilia narrativa, de temperar o propósito autoral, mas que talvez encontre o conforto da direção em acreditar que pode extrair mais consistência existencial de seus atores. Um belo, digno e recomendado filme, que segue a linha de “Girimunho”, “Mãe e Filha” e “Histórias que Só Existem Quando Lembradas”.


davi-pretto-diretorEntrevista Com o Diretor Davi Pretto

O filme já chega premiado. Depois de Brasília, BH e Cine Esquema Novo, O que o público do Rio pode esperar?
Podem esperar um filme que traz uma tensão latente do interior do meu estado, que acredito que acontece também em outras partes do país, logo creio que pode ser algo que as pessoas se interessem. É um filme sobre identidade, em um contexto de interior esvaziado, pós êxodo rural, onde permanecer no campo é um ato de resistência diário, onde todos os detalhes do cotidiano empurram as pessoas pra fora dessa região para irem pra cidade. Por causa disso, acaba sendo também um filme sobre violência. Não só a violência física, mas a violência silenciosa do capitalismo expansionista descontrolado, do progresso, da mecanização em massa que apaga o trabalho manual do ser humano, da idéia de ser alguém na vida.

Como foi o processo de criação?
O filme começou quando Richard Tavares, meu sócio na Tokyo Filmes, me trouxe um conto e um argumento com a ideia do filme e me convidou pra dirigir. Isso era lá em 2010. De lá pra cá, a gente escreveu o roteiro juntos, fizemos pesquisas, eu acabei filmando e estreando meu primeiro longa em 2013/14, enfim. Foi um processo longo, que acabou sendo importante pras reescritas do roteiro e as diferentes viagens de pesquisa que fizemos na região. Na última delas, eu fui com a produtora do filme, Paola Wink, e ficamos lá 3 a 4 semanas, indo de casa em casa, buscando uma família pra ser o elenco. Foi então que conhecemos Dione e a família que está no filme. O processo de troca com eles sobre o filme, de conversa sobre a vida deles e como isso podia influenciar a história, foi importante pra continuar a reescritura do roteiro, ao mesmo tempo que eu desenvolvia meu método de atuação com eles. No fim das contas, eles atuam uma história que não é a deles, mas poderia ser.

Um filme que precisa assistir na tela grande não é?
As novas mídias, internet e televisão funcionam para alguns filmes. E cada vez mais hoje as pessoas estão desistindo de ir ao cinema. É um espaço que precisamos manter, mesmo que seja para poucos filmes, que foram feitos pra estarem lá. Esse foi um filme que concebemos com uma linguagem de um cinema onde a locação é personagem importante, filmado em scope, que acredita nos enquadramentos, nos ruídos e som ambiente com dinâmica entre o silêncio e o impacto, não só a narrativa e os diálogos. Um filme feito pra ver na tela grande e som alto. Antigamente, cinema era isso, hoje temos que insistir, primeiro pra que as pessoas não queiram ver só no Netflix, depois temos que insistir que a sala esteja bem equipada, a projeção não esteja escura, que o som não esteja baixo. Fazer esse tipo de filme pra sala de cinema se tornou um ato de resistência.

Qual a importância da Semana dos Realizadores?
Tenho uma relação muito especial com a Semana. Exibi um curta meu em 2009, na primeira edição do festival, e pude ver a efervescência das ideias que ali estavam sendo trazidas. É um espaço importante pra se assistir e discutir um tipo de cinema que sempre é visto como à margem, seja nos grandes festivais ou no circuito comercial. Quando se exibe filmes arriscados e coloca-os como foco principal do festival, tu forma público, quebrando a idéia que cinema tem que ser só isso ou aquilo, porque quando esses mesmos filmes são só exibidos (sempre) nas seções paralelas dos grandes festivais, isso só fortalece a idéia de formatação quadrada do cinema.

3 Nota do Crítico 5 1

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