Projeto Flórida
A pureza das respostas das crianças
Por Fabricio Duque
Festival de Cannes 2017
Precisamos falar sobre “Projeto Flórida”, novo filme de Sean Baker, que se fez conhecido por ter realizado “Tangerine”, todo com uma câmera de celular. Desde sempre, o diretor americano opta pela autoralidade. Suas obras buscam a independência, a simplicidade da construção e um espontâneo tempo real de criação, vide “Scarlet – Uma Estranha Amizade”, de 2012.
Em “Projeto Flórida”, o grande injustiçado ao Oscar 2018 (junto com “Detroit em Rebelião”, de Kathryn Bigelow), que cada vez galga mais a fama pelo boca-boca de cinéfilos de plantão, e que foi o filme mais comentado (e com as maiores filas) no Festival de Cannes 2017, é uma fábula realista sobre os moradores periféricos, ao redor dos parques da Disney, que sobrevivem em motéis baratos. É uma radiografia intimista e cirúrgica do “sonho americano”. Do capitalismo que cria o sonho aos turistas, mas que oprime a própria fantasia dos que lá ficam. Sua narrativa, semelhante a “Docinho da América”, de Andrea Arnold, é naturalista, e construída pela espontaneidade, de câmera próxima, quase mosca, que traça um estudo visual destes americanos “fracassados” que precisam lutar com o que podem (o famoso jeitinho) para o sustento de suas famílias.
As interpretações de suas personagens beiram o ultra-realismo. É direto, seco, cruel, sarcástico, barraqueiro, enérgico, urgente, livre, de pulso forte e também meticuloso. Eles vivem a magia de uma fantasia de sonho “b”, de segundo plano. É uma crítica social com antropológico estudo-geográfico. Sean Baker tem controle absoluto de sua direção quando dosa sinestesia com humanidade, cuja trama conta a história de Moonee (a atriz mirim Brooklynn Prince, também injustiçada no Oscar 2018), uma agitada garotinha de seis anos, que brinca com o vizinho Scooty (Christopher Rivera) e faz novas amizades nas redondezas dos parques Disney.
Ela vive com a mãe (a atriz Bria Vinaite) em uma hospedagem de beira de estrada e as duas contam com a proteção do gerente Bobby (Willem Dafoe, que está indicado ao Oscar 2018 como Melhor Ator Coadjuvante) na batalha diária pela sobrevivência com poucos recursos e muitos riscos. “Projeto Florida” é sobre crianças: livres em seus propósitos de brincar e obrigadas a construir seus próprios limites. A descobrir como viver, como lidar com a fantasia capitalista ao redor (das cores desgastadas), como transpassar o tédio e como mensurar o certo e o errado dentro de um disfuncional meio. A fotografia busca a expansão ao distanciar o espectador em cenários panorâmicos cinemascope e a intimidade ao estreitar este confrontado espaço realista por super close.
Estas crianças são sobreviventes do dia-a-dia. Não são “losers”. E se precisar, pedem dinheiro para o sorvete. Aqui, a máxima da música “Eu fico com a pureza da resposta das crianças” e as histórias “causos” contados são potencializadas para personificar a necessidade e nos permitir sermos mais humanos e tolerantes. Entre ironia, sarcasmo, cumplicidade e até mesmo brasileiros (“que adoram a Disney”), o “reino mágico” é desmoronado, expondo fragilidades, rachaduras, dificuldades, hipocrisias, preconceitos e futilidades. Enquanto os outros turistas estão de férias, eles, moradores, “desajustados”, vislumbrando uma oportunidade financeira, ficam com suas tramoias e seus truques.
“Projeto Florida” é orgânico. Crianças sendo crianças. Uma idosa fazendo topless na piscina. O arroto. As destruições. As hiperatividades. Um gerente de um hotel endividado, lojas falsificadas de perfumes, o pedófilo vingado, comidas e brinquedos doados e as ideias de mulheres-mães, que fazem de tudo para a “fantasia” de “A Vida é Bela” permaneça. Tudo é a vida nua e crua. Até assistir de trás os fogos de artifício dos parques da Disney. Sim, mas este apenas retrata instantes. A vida continua e continuará. Aumentando a própria desgraça. Não termina com esperança, só com pequenos descansos, pequenas felicidades e pequenos momentos vividos. A “árvore continua crescendo”. Assim, cada um sobrevive com o que pode e com o que tem nas mãos (ou no corpo).
Concluindo, o filme é uma crítica social em tom fábula realista de um estudo de caso ao capitalismo-consumismo, que coloca os que estão à margem no sôfrego caminho do sonho americano. “Projeto Florida” é irretocável, e seu título é uma alusão ao projeto da própria Disney para a construção da Disney World. Escolhido pelo National Board of Review e pelo American Film Institute como um dos 10 melhores filmes do ano.