Os Boas Vidas
Fellini Ama a Arte e Ama a Vida
Por Fabricio Duque
“Os Boas vidas”, do mestre italiano Federico Fellini (de “Oito e Meio”, “A Doce Vida”) é um dos exemplos da corrente artística Neorrealismo Italiano (cujo marco inicial veio do filme “Roma, Cidade Aberta”, de Roberto Rosselini), que foi influenciada pela escola do realismo poético francês (e posteriormente a Nouvelle Vague), e que se caracterizou pela representação objetiva da realidade social-comportamental como forma de comprometimento político (mais do cotidiano naturalista-espontâneo da sociedade italiana) nas obras de ficção, aproximando mais da vertente documental-ideológica-estética do que da estrutura fantasiosa-romanceada-melodramática do cinema tradicional dos estúdios e estimulada por seus governos.
Assim, o longa-metragem é aproximado a uma apresentação livre da realidade do povo, como as festas locais (e seu concurso de Miss Siena 1953), a luta moralista-positivista da sobrevivência existencialista de núcleos familiares e seus respectivos sonhos de sair da “imundice” do interior ociosa sem perspectivas (em que pessoas usam o glamour de ternos e casacos de pele em eventos populares), projetar contraditórios quereres de crescimento profissional versus a defesa “covarde” do medo do futuro (boicotando-se por um “vitimismo melodramático”) e encontrar de uma vida melhor no cosmopolismo “Mambo” de Roma, a “Cidade Aberta” (a migração à metrópoles como se fosse uma Meca sagrada e salvadora).
A narrativa de “Os Boas Vidas” busca a naturalidade editada, principalmente por sua narração que apresenta, ambienta e adjetiva, de forma subjetiva e definitiva, pela essência intrínseca, suas personagens da “Companhia” (a união dos amigos que se ajudam em seu trambiques e “transações” afetivas). De nome implícito, “Boas Vidas” é um estilo de vida de jovens adultos “mimados”, cafajestes, covardes (que limitam suas percepções nas fugas deles mesmos), fanfarrões, que se comportam como crianças grandes e fogem de suas responsabilidades e “promessas perdidas”. Assim, o filme consegue traduzir quase de forma antropológica as características dominantes dos italianos que falam alto e são: verborrágicos, enérgicos, agitados, imediatistas, expansivos, verdadeiros, ingênuos, debochados, implicantes, confusos, cúmplices, desesperados, ansiosos, impacientes, intolerantes, “espertinhos”, brincalhões, desengonçados, passionais, ora excessivamente individualistas, ora demasiadamente preocupados com suas famílias e amigos, e sempre zombam uns aos outros e com brutos-rudes cumprimentos sociais, entre picardias aceitáveis e até mesmo esperadas.
Outro elemento importante deste longa-metragem neorrealista é seu conceito visual. A mudança iminente a ser desenvolvida é metaforizada pela tempestade que encerra a festa da comunidade. A transfiguração do começo de uma nova fase de um “Boa Vida” é expressado pelo jogo de cena fotográfico de importância focal da luz à sombra. Podemos perceber que toda transposição à tela lembra em muito uma estrutura de novela, com seus núcleos, reviravoltas, consequências e situações. Uma ação presente afeta o caminho de outra ação futura. Como por exemplo, reparar o “erro” inevitável, com inserções de referências cinematográficas nos diálogos pululados.
Os Boas Vidas são boêmios, que se alienam no positivismo crônico otimista e se recolhem à resignação do momento vivido (o tédio sonhador da mudança enquanto estágio alcoólico – como a aventura de “ir a África igual Ernest Hemingway”), fugindo das “fatalidades”, e “assistindo” a vida como um “road movie Beatnik”, e “se não encontram trabalho em Milão, continuam procurando”. Desejam o estilo livre hippie andarilho de viver um instante de cada vez, fora das regras sociais impostas, e por mínimo que seja, fazem a própria revolução individual com confusões, “patifarias” e “desonra às famílias”. Talvez o nome Fausto do protagonista possa explicar e resumir por um simbolismo histórico-literário (peça teatral do autor alemão Goethe). No livro, o personagem faz um pacto com o demônio “que o enche com a energia satânica da paixão pela técnica e pelo progresso”. Aqui, nós podemos captar a essência da ideia e trocar o referencial pelo deus Baco, da diversão por bebidas e pelo desejo sexual, que encontra limites na vulnerabilidade respeitosa das ordens ditadas pela família.
Cada um sabe exata e precisamente as particularidades idiossincráticas do outro (como a “preguiça” do marido em arrumar um emprego e ou o dinheiro emprestado para apostas e ou a delinquência vagabunda das traições quase como instintos adolescentes em “janelas próximas”). Um é intelectual, outro mais jovem, outro busca escrever uma nova comédia, outro se abriga no próprio silêncio. Eles vivem o limite tênue de seus mundos já acostumados. E cada um com “seus problemas”. Aqui, a mulher objetivada-desejada está um andar acima dos homens “animalescos”, que buscam encantar pela facilidade do discurso machista já massificado. As ruas desertas podem simbolizar desejos incompreendidos. E cenários de uma epifania de um mundo pós-apocalítico. A “simpatia social” é aumentada talvez em uma maior interpretação sexual. É um querer orgânico ao mundo de Charles Bukowski que precisa ser adormecido por medo da culpa, “lições de moral” e julgamento do próximo. Ou talvez por uma inocência iniciante (como um Peter Pan na Terra do Nunca) de experiência de vida. É a representação máxima da hipocrisia. E do orgulho da perfeição. E da punição religiosa.
Quando um “encontra” a “Meca”, o retorno ao universo natal não é mais o mesmo. O viajante não consegue limitar-se ao pouco, porque já vivenciou o muito (podemos buscar referência no filme de 2015, “Brooklyn”, de John Crowley). Só que como um raio, o protagonista volta a seu verdadeiro eu. Conversa no cinema, fala mais alto, troca o silêncio observatório pela necessidade de metralhar palavras, sente o ímpeto do desejo sexual, persegue insistentemente uma mulher “femme fatale”. Enfim, acorda o lado “cafajeste”, “ganha” a submissão choramingada da recém esposa e vão para a “casinha”. E já reintegrado, como um “prisioneiro” que reaviva a memória da “traquinagem”, “mergulha” incondicionalmente na diversão e na felicidade desmedida do Carnaval, época essa que é “permitido” a ele e a seus amigos “libertar” vontades “bagunceiras” e “palhaçadas” (como um homem se fantasiar de mulher; e experienciar a solidão bêbada do fim de mais um dia circense festivo – em que digressões sensoriais – com o som do vento – são confessadas: “Fugir ao Brasil”). É o embate entre a comédia versus o “teatro de revista”, pela trilha sonora magnífica de Nino Rota.
Mas quando ações hipotéticas projetadas são transformadas em concretistas, a realidade “assalta” e “prende” os sonhos. Deprimindo e resignando seu sonhador. A obrigação de ficar reverberar a repetição de “todo dia uma desculpa (que deturpam até mesmo fatos comprobatórios)”. São núcleos desenvolvidos como a vida, que se encontram na “saúde e na doença”, nos anseios, medos, frustrações, desilusões e nas carências, que acabam por escolher a calmaria do não querer. Eles procuram um final na própria vida romanceada (e vista como ficcional) e também limites (como a surra em um adulto para o colocar na linha responsável). “Quem não ama a arte, não ama a vida”, diz-se, e assim, a poesia realista é finalizada pela coragem de abandonar tudo, deixar todos (assistidos como um movimento pela janela de um trem) e recomeçar.
“Os Boas Vidas” é imperdível! E representa uma corrente artística que influenciou tacitamente nosso movimento “Cinema Novo”, que é dar voz a realidade cultural-comportamental das massas, surgido na Itália ao final da segunda guerra mundial. Seus maiores expoentes foram Roberto Rosselini, Vittorio De Sica e Luchino Visconti. Com Alberto Sordi, Franco Fabrizi, Franco Interlenghi, entre tantos outros, que se entregaram ao naturalismo interpretativo e à vivência plena de seus papéis. O filme venceu o Leão de Prata do Festival de Veneza na categoria de melhor diretor e foi Indicado ao Leão de Ouro de melhor filme. Também foi indicado ao Oscar na categoria de Melhor Roteiro Original.