Obscuro Barroco

Uma vida em poesia e ação

Por Fabricio Duque

Durante o Festival de Berlim 2018


“Obscuro Barroco” busca a experimentação visual para imergir o espectador no universo único das travestis, que compõem a ambiência atmosférica da “cidade mutante” Rio de Janeiro. A narrativa acontece pela narração da própria homenageada, Luana Muniz, que faleceu em 2017, com trechos de “Água Viva”, da escritora ucraniana (naturalizada brasileira) Clarice Lispector, e pela inserção de momentos-festas populares cariocas: o revéillon em Copacabana com seus fogos de artifício, o carnaval de transe-catártico, o funk das comunidades, os protestos políticos.

O filme busca construir o equilíbrio no caos, já conhecido e compactuado por seus moradores locais e turistas em trânsito pela intercalação sensorial, de sentir a floresta, as árvores, a chuva e as pessoas. “Obscuro Barroco”, da diretora grega Evangelia Kranioti (de “Exotica, Erotica, Etc”) é uma ode orgânica de amor a este “maravilhoso” Rio de Janeiro (que é uma “travesti pelas recorrentes transmutações”) de todo dia e seus integrantes ilustres: os travestis, figuras performáticas não entendidos por muitos. Aqui é traduzido a essência, a humanização adjetivada, a liberdade incondicional do ser.

“Minha história é uma escuridão tranquila, de raiz adormecida na força, de odor que não tem perfume, de pensamentos obscenos sobre ventos doentios. É obscura para eu mesma. Cada coisa tem um instante do meu “e”. O gênero não me pega mais. Cada um é um símbolo que lida com outros símbolos”, narra-se. É um filme de e para Luana Muniz. É uma homenagem a seu “olhar primitivo”, uma poética biografia, um prólogo.

Entre focos, desfoques, elipses, iluminados fragmentos fotográficos, “sinais, formas e artifícios”, o documentário despretensiosamente, com propósito livre-amador, permite que imperfeições e fragilidades sejam não pontos negativos, mas pelo contrário, a força de sua obra. “Não há nada mais difícil que se entregar ao instante”, diz como anjos de “Asas do Desejo”, de Win Wenders. “É a sensação de voar”, diz.

“Obscuro Barroco” é um “apocalipse orgástico” de uma “vida de violência mágica”. Luana Muniz, que ficou famosa pelo bordão “Travesti não é bagunça”, e por acolher prostitutas e pessoas de rua em um casarão na Lapa carioca, já foi retratada no documentário “Filha da Lua”, de Leonardo Menezes e Rian Córdova. A atriz (com orgulho por ela própria). Era um símbolo da Lapa, assim como Madame Satã foi no passado.

O filme, que tem um que da estética do escritor-diretor italiano Pier Paolo Pasolini, coloca seu público na avenida de um desfile de escola de samba na Marquês de Sapucaí. Nós vivemos o carnaval. Nos arrepiamos com o transe das músicas. Com a entrega incondicional das emoções humanas. E a figura do palhaço não poderia representar melhor a performance simbólica dos travestis, que são vistos pelos limitados como excêntricos, alegorias e divertimentos visuais. Sempre felizes por fora, e um turbilhão de tristezas por dentro.

“Obscuro Barroco”, que integra a mostra Panorama Documentário do Festival de Berlim 2018, foi exibida na sala IMAX. Assim, as “catarses esquecidas”, as cores, as alegrias desmedidas, a “vida sobre natural” (assim mesmo com duplo sentido ao sobrenatural). O Rio de Janeiro é um “travesti” com suas facetas”. Luana vive intensamente mesmo quando ouviu de um policial que “travesti vem depois do silêncio”. E “depois do silêncio vem o que? O nada”. A homenageada não deixou silêncio, muito menos o nada. Sua história segue perpetuada na gigantesca tela em terras alemães.


Festival de Berlim 2018: “Obscuro Barroco”


De forma lenta e elegíaca, a câmera desliza primeiro sobre uma floresta envolto em nevoeiro, depois sobre um panorama do Rio de Janeiro. Uma voz fora da tela nos diz que o Rio é uma fábrica de sonhos e pesadelos, uma cidade de transformações. Em seu filme ensaísta, a diretora explora as palavras poéticas de sua narradora trans Luana Muniz, que é ela própria um ícone da subcultura do Brasil. Em meio a uma maré sonambula de imagens, ela entra no mundo pulsante das criaturas da noite. Um fluxo de consciência do subterrâneo do Brasil entra diretamente no coração do carnaval de rua da cidade. Entre as máscaras e a maquiagem, os corpos jovem, nu e novo e uma exibição espetacular de fogos de artifício, pessoas entram em cena, as que sofreram uma transformação. Um palhaço branco nos conduz através do universo visual do filme no qual, de repente, os protestos anti-governamentais também aparecem. E então, a portas fechadas, tudo é descoberto, os “travestis” são serenatas e celebram até o sonho culminar em uma dança estática.

4 Nota do Crítico 5 1

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