Poesia do então, documento do agora
Por Michel Araújo
Parcialmente experimento poético e parcialmente documental, “O Chalé é Uma Ilha Batida de Vento e Chuva” (2018) rememora o trabalho tanto literário como social de Dalcídio Jurandir. Jurandir foi um romancista brasileiro da região norte do país – especificamente no estado do Pará – com suas principais obras publicadas entre as décadas de 1940 e 1960. Por um período de sua vida, Jurandir foi inspetor escolar num colégio da Ilha de Marajó, cuja situação social tanto quanto a ambientação natural germinaram a crítica e poesia de sua obra. A base para a narração do filme – feita pela própria diretora, Letícia Simões (“Bruta Aventura em Versos” 2018) – são cartas de Jurandir para sua família, que relatam não apenas de forma documental o cenário do interior paraense negligenciado dos cuidados da sociedade, como de forma lírica, recheada de significação e sensibilidade. A busca do longa-metragem, aparentemente, é de emular o olhar sensível porém ainda solidamente crítico que Jurandir possuía na literatura através, contudo, do artifício da linguagem cinematográfica. Busca essa da qual floresce uma sublime experiência estética muito em contato não apenas com as raízes de seu texto base mas com uma atualidade cinematográfica – tendências do denominado “cinema de fluxo” vêm à mente.
Os momentos de solidez e concretude no uso da linguagem – planos longos com a câmera fixa para fins contemplativos, ou mesmo os diálogos entre a diretora e os moradores de Marajó num sentido mais propriamente documental – permeiam a maior parte da obra, de forma a não fugir tremendamente de uma talvez necessária objetividade, ou mesmo estabilidade. Mas o que mais chama a atenção são os momentos experimentais, que manipulam o frame rate (quadros por segundos) do vídeo. Há uma cena em específico que o faz, porém à noite, com um meticuloso desenho de som e também uma brincadeira com o reflexo luminoso na lente da câmera. Esse momento captura uma intensa imersão por parte da autora que traga o espectador consigo para campos recônditos do cinema, mostrando que a obra, apesar de rememorar o legado de um artista literário, não presta completo tributo à forma literária como o fazem tantas adaptações ou documentários, que usam do texto narrado como muleta porém carecem de tato propriamente cinematográfico.
Somado a seu lado experimental, “O Chalé é Uma Ilha Batida de Vento e Chuva” revela uma faceta efetivamente documental, que contrasta os relatos de uma Marajó remota (década de 1940) com a realidade contemporânea, que se presumiria superior em termos de desigualdade social, porém não é o caso. Previamente à efetiva publicação de seu primeiro romance, “Chove nos Campos de Cachoeira” (1941), Dalcídio Jurandir já havia sido preso em 1936 por sua militância comunista, indício de que seus trabalhos vindouros possuiriam uma robusta consciência de classe e determinação crítica em prol das comunidades interioranas que lhe eram tão caras. Os relatos dos moradores atuais de Marajó revelam o abandono continuado, o abismo social entre pequenos agricultores familiares e grandes latifundiários – estes os quais muitas vezes são especuladores -, e a escassa possibilidade de ascensão social dos jovens estudantes, cujo sistema de ensino é copiosamente sucateado. Em um de seus relatos, Jurandir conta como quando trabalhava no jornal e foi escrever um artigo sobre o colégio de Marajó, o governo tomou provisões para que as crianças fossem alimentadas e tomassem banho para falsear a imagem de boas condições estruturais. Atitude essa que não diverge da realidade atual, não apenas no campo mas na metrópole também. De forma sutil porém efetiva, o filme expõe a atemporalidade das injustiças sociais, que na sociedade brasileira – em específico considerando o regime atual – ameaçam se perpetuar de maneira perene.
Em razão de sua sensibilidade, “O Chalé é Uma Ilha Batida de Vento e Chuva” não negligencia a corriqueira alegria da vida interiorana. Crianças se banhando no rio, pequenos parques de diversão, e mesmo o tato dos trabalhadores rurais para com a terra transbordam uma simplicidade harmoniosa distante da realidade metropolitana. O olhar da obra, atento à essas questões, não debate apenas uma urbanização radical em função de melhores condições de vida, mas valoriza a cultura da vida interiorana, a qual deve ser levada em consideração nas eventuais tentativas de otimização das condições de vida. Há um equilíbrio a ser respeitado entre o estilo de vida campestre e a integração com a metrópole e o desenvolvimento dos sistemas de saúde e educação, além de se avaliar uma possível reforma agrária que vá valorizar a agricultura familiar, a qual é muito mais sustentável ecologicamente e justa economicamente. Muito é dito na obra, mas mais do que dito, é artisticamente expressado.