Super 16, o lobo e a fé
Por Vitor Velloso
Em algumas listas de melhores do ano, em um tímido número, aparecia “Lazzaro Felice”. Pipocando aqui e acolá, o longa foi ganhando espaço nos debates até que alguns autores declararam ser um de seus favoritos. A curiosidade venceu a maioria e muitos foram atrás do tão falado filme, se deparando com uma obra relativamente fora do padrão e a crítica foi se polarizando.
Dirigido por Alice Rohrwacher, o projeto conta a história de Lazzaro, um inocente garoto que trabalha no campo. Ao contar desta maneira estou sendo falso, pois, o universo onde o personagem vive é absolutamente cruel. Sua ingenuidade e pureza diante do mundo, dá margem a todos ao seu redor o usarem das maneiras mais vilanescas possíveis. O trabalho escravo ao qual é submetido não recebe o devido tratamento político nem mesmo entre os outros escravos. Todos são ignorantes quanto os direitos que possuem, devido à falta de acesso a informação que é intermediada pela Marquesa (Nicoletta Braschi). Porém, a carga que recebem nas costas do trabalho não-remunerado, repassam ao Lazzaro, sobrecarregando-o com partes de suas tarefas. A narrativa acompanha toda a inocência do protagonista diante da manipulação, sem nunca reclamar, ao contrário, sempre devolve os gestos com gentileza, oferecendo algo em troca, quase como uma honra em estar ajudando aquelas pessoas.
Esta postura incomoda Tancredi (Luca Chikovani), filho da Marquesa, que viveu o tempo inteiro com a mãe manipulando e arquitetando integralmente, aprendendo com a mesma que era uma questão humana, muito além dela. E Tancredi enxerga isso nas pessoas que cercam Lazzaro e para testar qual a verdadeira profundidade puritana ou cândida do menino, pratica determinadas situações envolvendo maniqueísmos e jogos de interesse, com a falsa desculpa que é para compreender a natureza da bondade do jovem em questão, quando na verdade era uma fuga completa do mundo que a mãe vivia. Simbolicamente, uma aristocrata do cigarro, “liderando” a fazenda tabagista.
Alice, a diretora, não se prende em contar a narrativa a partir da crueldade humana e da ausência de esperança que há fora da mente de Lazzaro, que mantém-se sempre em um plano além do físico, a poesia de sua vida é fantasiosa mas funcional, mas também preocupa-se em fundar a fé do personagem numa misancene que evoca um misticismo inerente ao enredo. Compreendendo que fixar o mito da espiritualidade seria engessar o projeto e condená-lo a mediocridade, Alice vai por um caminho de autoconhecimento enquanto ser humano, transitando em uma espécie de anacronismo da fé. A ideia é interessante, afinal, parte da filmografia de Rossellini era sobre a atemporalidade do assunto e suas diversas reações no homem e na sociedade. De certa forma, “Lazzaro Felice” também quer tratar do assunto, a diferença é que a carga estética do filme é mais lírica, sempre evocando excessos, cores e um formalismo que busca uma misancene libertária.
O mito de Lázaro não é descartado na construção do personagem, porém, a obviedade de determinadas nuances são tão gritantes que prefiro não me aprofundar. Mas é necessário dizer que existe uma representação divina que permeia por parte das atitudes do protagonista, o possível paralelo com a arte é explicitado ao se aproximar do terceiro ato, onde vemos a deidade ganhar forma musical e deixar a misancene e seu espaço de origem. A fala parece solta e prosaica, mas é uma representação de uma cena específica particularmente única na obra, ainda que piegas. Porém, com toda essa construção metafísica por trás das figuras, de uma questão de reatividade à própria ideia inicial e uma flutuação do conceito chave da fé, neste caso cristã, é perdida pela falta de coragem com a conclusão do longa. Neste caso, é possível confundir coragem com didatismo. Alice passa o filme inteiro construindo uma carga, uma atmosfera que vai ficando cada vez mais clara com a progressão da trama, mas se rende em gritar aquilo que segurou durante a projeção. E se força é a solução de muitos projetos, não é o caso deste. A iniciativa de encerrar com amarras sólidas demais, provocou a fragilidade de toda a construção.