Fome
A busca pelo elemento autoral
Por Fabricio Duque
Mostra de Cinema de São Paulo
Uma das características marcantes do cineasta gaúcho-espanhol-paulistano Cristiano Burlan (de “Hamlet”, “Mataram Meu Irmão”) é a busca pelo elemento autoral, preterindo o conteúdo do discurso existencialista à forma “embrulhada”. Em “Fome”, apresenta-se como um estudo social, sem a hipocrisia do politicamente correto e ou “podados” argumentos, da população que vive nas ruas (os “inúteis” e ou “covardes”) de uma cidade grande e cosmopolita como São Paulo, questionando-se, de maneira “advogado do diabo”, os “dois lados da moeda”. O longa-metragem, por uma fotografia em preto-e-branco (que hipnotiza pela poesia concretista da ilusão realidade), com atmosfera de Robert Bresson, quase de ficção científica atemporal e “antigeográfica” (este por representar o todo com um específico não delimitador), “desintoxica” o espectador dos alheios e próximos “olhos famintos”, e nos imerge no universo sensorial, e puramente sinestésico, desses “invisíveis” seres. Nós somos confrontados com a humanizada presença desses “mendigos” e “mal cheirosos”, principalmente pelo “pensar falado” sem ressalvas, sem tabus, sem limites e sem pena sentimental e ou “pseudo” solidária de uma estudante que “precisa” fazer um trabalho antropológico da faculdade, “estimulada” por um professor utópico e de idealismo político-social. Ela entrevista e documenta histórias, porquês, possíveis causas e desejos daqueles que resolveram “integrar” a “arquitetura” visual.
“Fome” “disseca” a estrutura organizacional “desordenada” dos que dão restos de comida para “acalentar a alma social” e dos miseráveis que encontram nas ruas união, amores, amigos, conversas, embates “lavagem de roupa” (ex-aluno que tenta “consertar” o passado), liberdades, ócios e “férias” permanentes de tudo e todos. Há o viciado que não consegue se livrar do vício; a idosa empregada doméstica demitida e “aposentada”; e há o Balbu, que por livre espontânea vontade quis se “desconstruir” da pressão do mundo acadêmico, mas que não perde a “Fleura” europeia de conservar o orgulho e a altivez egocêntrica (de uma “falsa” autossuficiência), quando “flecha” opiniões quase monólogos sobre cinema e filosofia (quase uma inadequação “misantropa”) e arrogantes quebras de paradigmas de uma música francesa, por exemplo, com o intuito de enaltecer a “superioridade” intelectual. Analisa-se também o verdadeiro querer da ajuda, como o casal que “obriga” ao “necessitado” a “esmola” ofertada, o tratando como incapaz e indivíduo “ameba”.
O roteiro de “Fome”, intrinsecamente paulista (com sua epifania visceral e de catarse pós-apocalíptica) não se preocupa demasiadamente com as recorrentes improvisações interpretativas, que reverberam o amadorismo. Não mesmo. Mas que bom que isto não acontece, porque assim simplifica o processo, nos aproximando do popular, e fazendo das interferências dos passantes (que olham curiosamente para cena que está sendo filmada), um novo elemento rico a ser observado: de que quando há uma câmera em alguém, as atenções são “despertadas”, tornando o abstrato, visível. É inevitável o incômodo de “Fome” nos causa, visto que “aprendemos” a resignação de não mais nos importarmos com esses “integrantes” (“animais sem vida”) à margem que “poluem” nossos olhos; e assim novas soluções pululam nossos íntimos antes adormecidos e anestesiados. Que tal se cada um “adotasse” um morador de rua como um amigo (ou um “irmão”), ofertando banho e comida? Ou melhor: cada um ofertasse um emprego? Será que eles se acostumariam com novas regras, sem essa “liberdade” toda?
Será que a “vagabundagem” hippie de ser não traz mais “felicidade” aos envolvidos e “inveja” aos que precisam acordar às quatro da manhã para trabalhar? Não se sabe. Apenas que definitivamente o espectador não sai imune deste “estudo” cinematográfico. Concluindo, “Fome” é um filme, exacerbado pela trilha sonora (resumo) de Juão Nin, do “Andróide sem Par”, necessário, obrigatório, com uma entrega “absurda” do “nosso” filósofo (“adotado”) Jean-Claude Bernardet, do já conhecido Henrique Zanoni e da “artesanal” Ana Carolina Marinho. Nas veredas da metrópole paulistana, um velho homem abandona o passado e deambula na invisibilidade. Carrega consigo apenas um carrinho, alguns trapos e a velhice. Depois que se viu a morte é possível morrer de amor por alguém?