Culpa
Vidas por um fio
Por Fabricio Duque
Durante a Mostra de Cinema de São Paulo 2018
A indústria cinematográfica de Hollywood já está tão engessada em suas próprias fórmulas narrativas que sente dificuldades de enxergar que o cinema é muito mais que limítrofes efeitos especiais, e que a característica essencial é o conceito que se traduz em imagens a fim de contar histórias. Há quem diga que não há mais possibilidades de invenção na sétima arte. Pois é, mas o mundo de fora da caixa prova que novidades ainda existem e se utilizam de formatos condutores para que se crie o efeito de uma sinestesia imersiva. Nós espectadores somos convidados a participar como integrantes passivos (assim como o personagem principal, também só ouvimos a ação), algo como uma experiência de realidade virtual, como no caso de “Filho de Saul”, de László Nemes, filme este que faça o público inferir ao assistir o da questão aqui, “Culpa”.
Dirigido pelo dinamarquês Gustav Möller, estreante em um longa-metragem, que muito provavelmente tenha bebido da fonte do manifesto Dogma 95, criado por Lars von Trier e Thomas Vinterberg, “Culpa” é todo em um único plano sequência, com câmera próxima (quase agressivamente em close) a seu protagonista, para assim captar as sensações do calor de tomadas de decisão. A trama versa sobre o policial Asger Holm (Jakob Cedergren, de “Submarino”, “Esquadrão de Elite”) que está acostumado a trabalhar nas ruas de Copenhaguen, mas devido a um conflito ético no trabalho, é confinado à mesa de emergências. Encarregado de receber ligações e transmitir às delegacias responsáveis, ele é surpreendido pela chamada de uma mulher desesperada, tentando comunicar o seu sequestro sem chamar a atenção do sequestrador. Infelizmente, ela precisa desligar antes de ser descoberta, de modo que Asger dispõe de poucas informações para encontrá-la. Começa a corrida contra o relógio para descobrir onde ela está, para mobilizar os policiais mais próximos e salvar a vítima antes que uma tragédia aconteça.
“Culpa” é um Thriller eletrizante de suspense, de investigação-tensão de um perigo iminente no limite do acontecer, que se desenvolve pelo acaso das situações. Que lembra do seriado “Homeland”, porém se distancia pela sobriedade não histérica. O que assistimos é um procedimento típico e crível em que histórias vem e vão à mercê da perspicácia profissional dos policiais treinados (sem descanso, na pressão, que vai “pescando” dicas para ajudar e que precisam ter um extraterrestre controle emocional) à “antiácido para aguentar” e dotados de uma ironia e humor agridoce. Há uma humanização do processo entre “distritos da luz vermelha”, sem “ligações pessoais no trabalho”, perguntas definidores se “usou drogas”, e “rotação de trabalho”, que “deixa cozinhando as vítimas culpadas”.
São negociações telefônicas que inferem ecos a outros filmes, como “Por Um Fio”, de Joel Schumacher, “Na Mira do Atirador”, de Doug Liman, “Celular – Um Grito de Socorro”, de David R. Ellis. “Culpa” é também sobre a pergunta se os fins justificam os meios e se regras podem ser quebradas para resolver o caso, ultrapassando o poder do trabalho pelo orgulho do culpa. O público é introduzido a sentir na própria pele a frustração e impotência de Asger, que tenta mover morros, ofensas e montanhas para provar que o “tempo não é aliado”. Ele peca por pré-julgamentos e por atestar cedo demais a intuição de quem sofre. E ou queimar cartuchos com uma pista falsa. Como consertar isso? Uma decisão precipitada sem provas pela adrenalina moralista e pela burocracia que atrapalha?
Indicado pela Dinamarca para concorrer a uma vaga de Melhor Filme Estrangeiro no Oscar 2019, o filme prende o espectador pela realidade, mitigando os clichês dos americanos, ainda que perca o ritmo por cair na armadilha do final de explicar demasiadamente tudo e “confessar” ligações passadas. Somos levados a questionar que este trabalho “não é para todo mundo”, somente àqueles possuem “sangue de barata” nas veias.
Contudo, apesar das derrapadas dos gatilhos comuns, “Culpa” é um exemplo de que é com a expressão “menos é mais” que o verdadeiro cinema acontece e mostra seu valor, principalmente pela força de seu roteiro bem definido, pela entrega não ilusória de seus atores com suas sutilezas interpretativas e pelo controle “balé” absoluto da direção, que substitui orçamento curto por uma genialidade criativa. É um filme acima de tudo sobre as surpresas de ser um ser humano e das infinitas peças que a vida prega, surpreendendo até mesmo o mais preparado dos homens. É uma parábola de que sempre se deve questionar e duvidar de tudo, não acreditando em decisões finalistas de um achismo altivo, dominante e um tanto quanto narcisista.