Curta Paranagua 2024

Corpo Elétrico

A estética naturalista da existência

Por Fabricio Duque

Corpo Elétrico

Há filmes que nascem clássicos, icônicos, plenamente superiores, irretocáveis, sublimes em suas maestrias e únicos em sua essência. “Corpo Elétrico” é definitivamente um deles, e representa a estreia na direção do mineiro Marcelo Caetano, que já qualificou seu currículo trabalhando como assistente de direção em “FilmeFobia”, de Kiko Goifman; “Tatuagem”, de Hilton Lacerda (este cineasta que aqui participa como um dos “provocadores textuais”); “Boi Neon”, de Gabriel Mascaro; “Mãe Só Há Uma”, de Anna Muylaert (Marcelo também colaborou com o roteiro e a diretora aqui assume o papel de Produtora Associada); e como diretor de elenco em “Aquarius”, de Kleber Mendonça Filho (que já desferiu muitos elogios ao filme em questão nesta crítica).

A ideia de “Corpo Elétrico” surgiu a partir do poema orgânico-corporal-sensorial “Eu Canto o Corpo Elétrico”, de Walt Whitman (“Vê-lo passar comunica tanto quanto o melhor poema, talvez mais, E te demoras a contemplar seu dorso, a parte posterior de seu pescoço e as laterais dos ombros”), sobre a estética da existência, reverberando a “diversidade dos corpos e das belezas possíveis em todos os corpos”, disse Marcelo. Não se sabe se a música “Corpo Elétrico” “pernambucanidade” latina do grupo baiano, Academia da Berlinda. “Suor no rosto, Exalando desejo, Deixando o sangue ferver… Enquanto seu olho brilha, Nada mais vai me faltar, Um corpo cheio de trilha, E uma voz pra cantar”).

“Corpo Elétrico” fornece leveza a sua narrativa contemplativa em planos longos, mais em sequência e estáticos; de cotidiano natural em suas micro-ações; espontânea em suas reações e vivências; despretensiosa por observar e nunca julgar as escolhas de cada um; e pela liberdade de ser e de agir no pertencimento sócio-comportamental de suas personagens no meio que se vivem, trabalham e sobrevivem a própria existência dia após dia, entre tédios, solidões, ócios, esperas, proteções à tristeza. Eles utilizam subterfúgios defensivos para se desconectar de suas fragilidades, desejos e vulnerabilidades: a bebida (“a catuaba perigosa”), o sexo, a “cozinha fumódromo”, os flertes, as drogas, a diversão estendida e de felicidade desmedida quase infantilizada, o “mar para descarregar a máquina (do pensar)”, as conversas pós-sexo com o tempo do cigarro (instante que aprofunda e concretiza as relações afetivas).

Seu gênero é inclassificável por criar infinitas possibilidades ao conduzir seus conceitos, perpetrar a pluralidade de identidades sexuais ainda indefinidas dentro da lógica-fórmula das definições limitadas em que vivemos no agora. O mundo está mudando. Fato inquestionável. Está mais ilimitado, mais possível, mais humano, mais solidário, mais aceitável, mais cúmplice, mais apressado nas vontades. O romantismo deturpou-se em encontros fugazes e líquidos; em relacionamentos abertos não possessivos (que inclusive conversam abertamente sem culpas e ou sensibilidades aguçadas-clichês sobre o ex do outro); em amores livres quantitativos; em surubas carnais ao êxtase, que esvazia o corpo causando o vazio do querer. Antes era o vício do amar muito, agora do amar muitos, para que talvez a sensação desesperada possa se curar no próximo. “O amor romântico é opressivo. A cama é lugar do desejo, mas também do sonho”, diz o diretor. Aqui, o que define a sexualidade é o sentimento. E mãos, desenhos, “rostos fortes” são observados. Nada é supérfluo e ou gratuito.

“Corpo Elétrico” traduz-se pela exposição elétrica do 220 volts e abraça a estética do novíssimo cinema nacional, bebendo na mesma fonte dos filmes já citadas acima. As ilusões à forma são mitigadas, entra-se então na realidade nua e crua quase documental com seus cenários populares de trabalhadores em uma fábrica de roupas na cidade de São Paulo (até mesmo de seus figurantes que transitam pela rua durante uma chuva), que poderia ser em qualquer lugar, visto que sua história apresenta-se de forma universal e genericamente específica. “Trabalho muito para bancar o castelo”, defende-se. “Em São Paulo, o trabalho reverbera fora dele, nas horas vagas. A ideia do filme é como se libertar disso, como se reencontrar com o próprio corpo”, diz o diretor.

A história conta a existência de Elias (o ator Kelner Macêdo, de “O Resgate do Pavão Misterioso” – ainda inédito – que interpreta com sutileza suas reações, personificando suas pausas e silêncios), um jovem paraíba “não muito pintosa”, de vinte e três anos (que “parece ter mais idade”), que trabalha como estilista em uma fábrica de confecção roupas no centro de São Paulo, que tem “Londres como sua cara”, que vive sozinho (já superou sua “família silenciosa”), que passa seus dias entre o trabalho e os encontros com outros homens (“Tem que conhecer para saber se o cara é massa”), que prefere “gente à máquina”, que fantasia encontros sexuais fetichistas (com “cheiro de suor e de farda molhada”) para vangloriar o próprio status quo (não exigente e sim com pressa de aproveitar a fase áurea de um recém adulto), e quando está triste, “vai à rua tomar uma cerveja”. Enquanto reflete sobre as possibilidades de futuro, começa a ficar cada vez mais próximo dos colegas da fábrica, e vê os amigos seguirem caminhos diferentes dos seus.

“Corpo Elétrico” é também uma crítica às indústrias, que “exploram” seus trabalhadores em funções fisicamente repetitivas (impossível não referenciarmos a “Tempos Modernos”, de Charles Chaplin), pagando uma baixíssima hora-extra para trabalhar no final de ano, causando homéricos cansaços com o intuito de “bater meta” e revistando bolsas de seus empregados.

O longa-metragem não é um filme gay, ainda que possua cenas homoeróticas e relações “xoxadas” de “bicha branca meio lânguida”. Não. É sobre a diversidade e a naturalidade da inclusão social. A crítica ao preconceito (e à “volta ao armário”) de ser “bicha em qualquer lugar” está presente na cena aprisionada de “não se expor tanto e diferenciar as relações de trabalho das sociais, de separar mais as coisas, ser mais ético, de não se perder” e no “tapa com luva de pelica” quando todos dançam no ônibus e ou quando pega peças de tecido “que deu defeito”. Todos, “ecléticos”, dançam funk, pagode e música eletrônica, aceitam as escolhas sexuais dos outros (até mesmo a mãe de um deles que vai dormir para deixar seu filho se divertir em uma festa), vão à praia, divertem-se e realizam a cerimônia “drag” de casamento de um heterossexual.

“Corpo Elétrico” é também sobre o universo travesti e seus shows ópera (a presença tupi guarani “Amazonas” de Heitor Villa Lobos) “bate cabelo” de Drag Queen, com uma moto à moda de “Priscilla, a Rainha do Deserto”, de Stephan Elliott. “Ser bicha é também resistir. Vou te confessar. Que às vezes nem eu me aguento. Pra ser tão viado assim, Precisa ter muito mais, muito talento”, recita a música funk “Talento”, de Mc Linn da Quebrada (que também participa aqui como atriz). Nós espectadores sentimos a atmosfera. Somos imergidos no mundo abordado. Somos participantes e convidados.

Quando um deles, o “ficante” Welligton (o ator Lucas Andrade), o “ Marcia Pantera Grace Jones”, quase “aristocrático”, resolve “peitar” o sistema e “viver de shows” (“Se tiver que ser, vai ser”), todo o “castelo” de Elias é posto sob ameaça e questionamento às “Horas que têm que seguir o rumo”. Tudo é natural demais, espontâneo demais.

“Corpo Elétrico”, que já passou pelos festivais de Roterdã, Guadalajara e Cine Ceará, envolve completamente o espectador quando opta por fugir dos clichês, estereótipos, caricaturas. É um filme livre, de recortes instantes, de fragmentos elipses de vidas comuns que comungam afinidades e vivem a “família que escolheram”. “No homem está o ímpeto do universo conhecido”, já escreveu Walt Whitman. Sim. Aqui também. No mar, na terra e ou no ar do pensamento. Uma obra-prima.


Disponível até 17 de outubro de 2020 no Mubi.

5 Nota do Crítico 5 1

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