O Tio Sam comprou o comboio
Por Vitor Velloso
O mercado blockbuster de cinema brasileiro não possui muitos filmes de gênero em seu catálogo, além da comédia. Assim, sobra muito espaço para dramas e romances, e pouco ou nada, para o mercado de ação. Temos um exemplo recente, “Reza a Lenda”, do Homero Olivetto, que possuía atores globais, um certo orçamento e uma proposta de western, que apesar de frágil, tinha méritos. Infelizmente o filme era terrível, mas a ideia de abrir novos horizontes para o Brasil era válida.
“Comboio de Sal e Açúcar” é um filme dirigido por Licínio Azevedo, diretor nascido no Brasil, com nacionalidade Moçambicana, que conta a história de um trem de carga, escoltado por militares, e repleto de civis em busca de uma vida melhor, que são usados como mão de obra para possíveis necessidades durante a viagem. E como o material transportado é muito valioso, sabe-se que eles sofrerão ataques ao longo da jornada.
O filme busca essa narrativa através de pequenos dramas entre os passageiros e tensões com os militares, munido da imersão em cenas de ação para intensificar o perigo desta aventura. O problema está na mistura destes elementos, eles não funcionam como uma unidade formal. Orçamento não é um argumento válido para defendê-lo, isso eles tinham de sobra. É nítido que o projeto recebeu um investimento altíssimo em todas suas etapas de produção. Mas não adianta ter reserva financeira, quando não há proposta do que se está fazendo.
Bom, como defender uma ideia que nem sequer existe? Filmes feitos por encomenda, para suprir um mercado popular à beira da decadência ideológica, na maioria das vezes são tóxicos. Muitos se moldam nos padrões norte-americanos e são vendidos para o resto do mundo, em suas formatações estéticas que o público aprovará (leia-se: À padronização de 85% do circuito comercial). Assim, autoria está fora de questão, o diretor apenas assinará o papel que lhe é oferecido. O caráter alienador do produto em questão, encontra-se na prateleira que ele é exibido, sua face não possui nacionalidade, nem identidade, são colagens de clichês e pragmatismos instantâneos, sempre buscando o senso comum. O erro começa ao se ignorar a diferença semântica de: identificação popular e preguiça.
A identificação não surge, necessariamente, de mutilações dos arquétipos televisivos colonizados de determinada nação. Esse processo, é muito mais complexo que gatilhos fajutos. E se a preguiça começa na idealização do projeto e se estende para sua produção fílmica. Planos e Contraplanos dinamizam os diálogos hiper expositivos, recheados de frases de efeito. A mesma estilização de qualquer filme americano de orçamento relativo é utilizada aqui. As atuações são inexpressivas. Não há como culpar apenas os atores, o roteiro parece ter saído de um episódio mal sucedido de uma minissérie da Record.
O desrespeito para com seu próprio assunto, ao descontextualizar a historicidade necessária para a real compreensão dos acontecimentos, ofende qualquer respeito ético aos fatos, vide que o filme assume esse caráter histórico. A vilania de determinados personagens, como representação de determinada forma de poder e “valor”, é tão permeada de caricaturas, que faz um desserviço à própria intenção. Não dá para levar a sério um personagem que usa as mesmas formas de fala de um vilão de Aladdin, mas se esforça para ser a encarnação do mal com farda. O filme soa amador, mal acabado e jogado às pressas.
Quando se introduzem os momentos de ação, o filme tenta respirar com alguma dose de adrenalina na tela, mas envergonha o público ao instaurar uma falsa estoicidade, que aliada à uma mis-en-scene desleixada, invoca a indiferença ao seu redor. Os acontecimentos não importam, pois não há interesse em retratá-los, apenas em formatá-los para que o prazo de entrega seja cumprido. Os arcos dos personagens são pífios, existe alguma tentativa de dramaticidade na situação dos civis, tentando forçar algum sentimento no espectador. Essa intenção, vai por água abaixo, ao se revelar uma artificialidade em tudo aquilo que se representa, desde os diálogos às situações que são impostas aos personagens, pois suas ligações narrativas são tão frágeis, que diversas cenas são literalmente jogadas ao vento, para que seja dito algum discurso pronto de mensagem de twitter. Não há nenhuma validade em apresentar um assunto, para contorná-lo covardemente, seja para evitar alguma crítica da aristocracia, burguesia ou setor militar de qualquer país. Pelo contrário, esse ato de isenção do discurso, mas que busca a mínima politização na forma, é um dos atos mais nocivos do mundo contemporâneo. A superfície nunca foi tão medíocre.
Ora, fugir da política é fugir do próprio ato de filmar. E se o filme tenta ofuscar assuntos sérios demais para o roteiro, ele busca mistificar ou polarizar os lados de uma guerra, para que seja explícito que “A Guerra é ruim”. Realmente, é uma conclusão extremamente complexa. Ninguém havia prestado atenção nisso, afinal, o século XX é um filme de terror, filmado pelo Eli Roth, aliás. Esses breves assuntos levantados pela obra não dão mais que duas linhas de diálogo, pelo fato do filme ter medo de se mostrar. Falar de assuntos históricos, requer alguma perspectiva, logo a outra face irá se inflamar contra seu discurso. Não há como correr disso. E por esse fator, ele tenta fazer aquilo que ninguém consegue: agradar a todos. Ele não caracteriza nem por três segundos o inimigo, não parte nem mesmo de uma perspectiva moralista como Dunkirk (Christopher Nolan). O diretor simplesmente ignora a multifacetação de qualquer movimento que ele retrata, para se ausentar da pauta de discussão ética. Opinião todo mundo tem, já argumento…
Interessante analisar como um filme que está o tempo inteiro se vendendo à nações brancas e colonizadoras, basta olhar a forma como ele é filmado e montado, não se importa nem mesmo em apresentar, o mínimo, das condições sociopolíticas do país. Isso, acontece pois seu interesse não está na narrativa contada, nem nos personagens, e sim, em apresentar este compendium estético circense, que tenta atrair público para que o espetáculo da desgraça alheia seja contado didaticamente à família que assistirá o filme em VOD. Afinal, a indústria já entendeu que histórias de superação e pessoas em situações liminares, vende. Pelo mesmo motivo, a mídia adora exaltar êxitos de pessoas saídas da miséria. Essa ilusão da fé, de que com boa vontade e esforço, todos conseguem, é o mesmo motor que impulsiona o filme. Pois, não se trata de denunciar, mas sim de representar e, claro, filtrar para que as informações sejam expostas.
O roteiro foi adaptado de um romance do próprio Licínio, logo imagina-se que sua traição (leia-se adaptação), seja minimamente condizente com seu processo de pensamento literário. “Comboio de Sal e Açúcar” é um retrato deprimente de “autores” que se prostituem no mercado internacional, munindo-se de assuntos sociopolíticos, mas que não são capazes de filmar as próprias ideias.