Mostra Um Curta Por Dia Marco mes 9

Antes o Tempo Não Acabava

Sobre a transposição da inocência pelo auto-fortalecimento

Por Fabricio Duque

Durante o Festival de Berlim 2016

Antes o Tempo Não Acabava

Com a frase “Não é um filme etnográfico, tampouco caricato”, o filme “Antes o Tempo Não Acabava”, dos diretores Fábio Baldo e Sérgio Andrade, é apresentado na mostra Panorama do Festival de Berlim 2016. Sim, é verdade. Apesar de estimular o debate da questão indígena (já que há quatro línguas presentes e “terá legendas no Brasil”) e a presença da homossexualidade – esta por sua vez desencadeando rituais hipócritas de salvação e purificação pelos personagens da trama (formigas que mordem as mãos e tem que “aguentar a dor”). A narrativa constrói a atmosfera de tempo pausado-editado (de câmera próxima com estrutura documental), em micro-ações de elipses continuadas (como fazer o chá, o artesanato), e a estética da imagem (como o reflexo do vidro e a ambiência de se passar pela comunidade, assim retratando o lugar vivenciado por costumes diários e cotidiano naturalista).

Entre a casa destruída, o sacrifício de uma filha, o hip-hop, o preconceito com a própria nascença (“Você pode ser índio, mas você não tem cultura”), o trabalho manual Chaplin de ser (igual a “Tempos Modernos”) de uma empresa de montagem da Zona Franca de Manaus, o aviso das férias, tudo busca a calma de tempo real. E quando as peças do quebra-cabeças começam a ser montadas, o espectador já está adequado ao ritmo do roteiro (que tem a colaboração de Felipe Bragança). Nosso protagonista, Anderson (o ator Anderson Tikuna), um jovem rapaz que possui raízes na etnia indígena saterê. Luta para ser cabeleireiro, usa cabelo grande, é forte, e ouve funk, precisa cuidar de uma criança “mongolóide” e convive com as “bichas da cidade”. Ele vive entre dois mundos. O que se acostumou e o que projeta seu desejo de mudança. (como passar batom, experimentar sem caricatura ser mulher por um momento, dançar “Single Ladies”, de Beyoncé, e ser iniciado sexualmente por um Guia espiritual – telepático, alegórico, religioso).

Quando ele se muda para Manaus e vai morar na cidade grande, ele começa a se ver preso entre os embates culturais das tradições do mundo de onde veio e cresceu e os costumes urbanos e o complexo e conturbado cotidiano da metrópole. “Antes o Tempo Não Acabava” mescla, em seu universo cinematográfico, não atores, que questionam que “uma cobra nunca deixará de ser cobra”. “Hoje vamos lutar pelas mesmas armas deles. O que eu tenho que fazer para ter meu nome de branco?”, busca a mutação simbólica que expõe a interferência maciça, manipuladora e maciça de destruir um povo e construir uma igualdade padronizada. Anderson quer deixar de ser índio para vislumbrar uma possibilidade de sucesso. “A história está se repetindo”. Ele busca a salvação, porque nada o salva. Nem mesmo o ritual divino “retira” seu gostar por homens. O partir representa a liberdade de embarcar no desconhecido.

As dificuldades persistem. A prostituta de idade avançada; o quarto alugado; o flerte mais puro, mais direto e mais sexual, a filosofia de “uma hora ele encontra o certo”; a catarse de um show de rock; o sexo gay – o gozo e o abandono. Continua perdido. Mais perdido. A esperança é mitigada pouco a pouco até se constituir no muito. A música de psicodelia robótica faz parecer que está em contato com o espaço. O que Anderson mais quer é o amor. Ser amado. Ser cuidado. E assim, submete-se a vulnerabilidades, violências físicas e morais, a fuga frágil, a opção feminina de uma “conhecida de uma Cooperativa tribal – não ONG”, as redes sociais.

O protagonista desbrava seu próprio ser, segue o amadurecimento inevitável, protege-se da loucura com a poesia visual da cena “grito da libertação no meio do rio em um barco”. “Antes o Tempo Não Acabava” é sobre aceitar quem se é e transpor o medo, a ingenuidade e a inocência pela perspicácia do auto-fortalecimento, contra a hostilidade, individualidade, egoísmo, crueldade e fofocas dos outros e principalmente dos mais próximos. Concluindo, um filme que mescla ritmo, equilíbrio, conceito autoral, paixão e decisão com a suavidade da trilha sonora de Moby e de Kraftwerk. Recomendado.

3 Nota do Crítico 5 1

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