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Crítica: Anjos de Ipanema

Faltou um bom projeto

Por Filippo Pitanga

Durante o Festival Cine Ceará 2018


Não que o momento histórico e político da época retratada na década de 70 não merecesse um registro em filme, tampouco que o momento atual não necessitasse desta reflexão, mas infelizmente faltou a “Anjos de Ipanema” um projeto melhor de execução para converter em cinema as boas intenções do generoso olhar apaixonado da própria diretora Conceição Senna (que também viveu de perto o mesmo período que seus entrevistados descrevem, apesar de não inserir a si mesma dentre os testemunhos). Um filme que precisava existir antes que alguns de seus contemplados pudessem vir a óbito e a oportunidade de preservar a memória fosse perdida, mas o fato é que esta obra poderia muito bem ser um telefilme ou minissérie para a televisão, sem desonrar o mérito da lembrança.

O documentário foca na cola que liga todos os personagens, ou seja, a construção de um píer na praia de Ipanema que dá título ao filme e que serviu de ponto de convergência para alguns dos maiores intelectuais, artistas e nomes culturais em geral se reunirem contra a repressão da Ditadura no Brasil. Um recorte regado aos velhos preceitos básicos herdados originalmente do lema “sexo, drogas e rock n roll” da geração beatnick, da resistência à Guerra do Vietnã, e do amor livre com a pílula e os direitos feministas de emancipação da figura da mulher, outrora ainda tão aprisionada pelo casamento e preceitos sociais. Todos estes nomes que ali se encontravam podiam estar sendo policiados ou seguidos pela polícia e exército de modo a monitorar uma juventude considerada subversiva e anárquica, mas que, na verdade, apenas exercia a era hippie no mundo como uma contracultura ante a extrema violência e conservadorismo da época. Algo que pode estar se sucedendo novamente agora mesmo na história, urgindo a obrigação de se olhar para trás e aprender com nossos erros e acertos, certo?

Contudo, o que poderia gerar uma ótima reflexão sobre os velhos e novos tempos, diante da analogia que apenas o cinema pode trazer, talvez soe autoindulgente pouco dialético ao deixar de se debruçar sobre as tensões da época e sim mais sobre a liberalidade que elas obrigaram seus participantes a tomar. Nenhum dos entrevistados, por exemplo, possui quaisquer relatos de prisão ou tortura. Aliás, há inclusive uma frase no filme pronunciada por uma de suas personagens onde ela fala justamente sobre isso, quase como se o filme assumisse um mea culpa, e ela explica que é melhor não falar nada sobre o lado negativo e sim sobre o positivo para compensar.

O que acontece com isso é deixar de contextualizar o princípio do contraditório, ou melhor, a dialética, onde o hedonismo puro e isolado pode soar fútil sem associá-lo a tamanhas injustiças, prisões e sumiços de pessoas que a Ditadura executou para que o outro lado precisasse reagir de forma ainda mais livre a contrabalançar os pesos da desigualdade. Não apenas para jovens que possivelmente possam estar assistindo e desconheçam a proporção do perigo passado nas entrelinhas dos relatos, mas porque erigir todo o argumento do filme apenas numa estrutura estritamente solar e risonha parece leviano e um pouco datado. Ou pode levar até a interpretações injustamente equivocadas, como acreditar que o filme pudesse se resumir ao saudosismo de inconformados com uma época que jamais viria a se repetir, como se lágrimas derramassem sobre o privilégio perdido da juventude e do bronze dourado das areias de Ipanema…

Esteticamente o filme possui inúmeras complicações, percebendo-se que foi feito de forma modesta e despretensiosa — mais para alcançar a urgência do registro pela idade avançada dos entrevistados e pelo momento histórico que revive no momento um protótipo daquela época, guardadas as devidas proporções. O despojo em cena, dos cenários desconjugados ou despreparados, à falta de equalização entre os segmentos, pode soar como negligência ao invés de espontaneidade. Bem como alguns desleixos desnecessários pela equipe técnica, como descuidar das superfícies reflexivas e aparecer a todo instante no reflexo das janelas, vidros e espelhos fazendo outras coisas nos bastidores, ou mesmo deixar transparecer equipamentos técnicos e microfones em algumas cenas e noutras não.

Para além disso, em se tratando de um documento histórico, as informações poderiam ser melhor contextualizadas, seja trabalhando melhor as datas e momentos históricos, como em qual governo militar se situaria cada fase, ou mesmo no que estivesse acontecendo ao redor daquela bolha que marcou época, para poder cruzar referência. Ao mesmo tempo, apesar de falarem de um ou outro escritor ou referenciar peças de teatro/musicais e equipamentos onde exerciam parte de sua contracultura, algumas outras interdisciplinariedades quase não são tocadas, como o cinema, música ou a TV…, para apresentar outros polos de referência, mesmo quando fossem antagônicos. Até porque se você tem como entrevistada uma grande atriz do cinema novo e do cinema marginal como Maria Gladys, valia a pena situar melhor onde uma coisa sobreveio à outra como parte da revolução que todos representavam. Sem falar que as animações do início da projeção, não muito bem encaixadas, também são abandonadas e ficam como pontas soltas.

No fim, há muito para divertir, voluntária ou principalmente involuntariamente…

1 Nota do Crítico 5 1

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