A Vida Invisível
A visibilidade de um diretor orgânico
Por Fabricio Duque
Durante o Festival de Cannes 2019
“A Vida Invisível”, baseado na obra ficcional literária “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão” da recifense Martha Batalha, e exibido na competição da mostra Un Certain Regard do Festival de Cannes 2019, sai vitorioso com o prêmio Melhor Filme do Grande Júri. Mas que merecido, porque o longa-metragem corrobora a maestria de seu diretor Karim Aïnouz (de “Praia do Futuro”, “Céu de Suely”), que é a construção orgânica e suspensa de um tempo descompassado na realidade. Nós espectadores somos conduzidos a uma caseira epifania, soando íntimo e naturalmente disfuncional. É um filme de amor. De humano a humano. Um estudo de caso que reverbera uma crítica comportamental-social. Contra o machismo e a impossibilidade da mulher existir sozinha e autônoma da vontade dos outros. A fotografia granulada à nostalgia, para assim desenhar a sensação imersiva da intimidade. Busca-se a proximidade e a cumplicidade com quem assiste.
“A Vida Invisível” é sobre o bucolismo existencial. Uma resiliência aprisionada no mais fundo do querer, que se transforma momento a momento em um resignada condição de que nada nunca mudará. É a natureza selvagem do Rio de Janeiro e Eurídice, a personagem principal, que separada de sua irmã, vive sua vida como uma moderada e adestrada servidora familiar, com ideias transgressoras nas horas vagas. Há um que da ambiência do escritor dramaturgo Nelson Rodrigues em sua narrativa, pela forma de mesclar elementos teatrais à moda de uma novela com a espontaneidade autora da própria criação, em processo, inferindo a abordagem onírica-poética de Terrence Malick e ao filme de semelhança temática “Entre Irmãs”, de Breno Silveira. E à energia física coloquial de um de seus anteriores, “Madame Satã”. Da “filha de um português ignorante do século passado” que rebate com implicâncias cúmplices.
Detalha-se aqui pistas-lembranças, de passado e presente. De épocas e geografias deslocadas. De uma irmã que “dá corda”. Que toca piano e “não consegue fazer os dedos pararem”. É também um filme sobre o desejo à flor da pele e histórias sexuais contadas (a “mangueira dura”). “A Vida Invisível” é sobre a família, suas memórias e seus casos. A condução quer tanto a liberdade da cena que permite a improvisação (que incomoda pela sistemática de se seguir os diálogos do roteiro e ou de inserir artifícios do “lança perfume na hora do ato sexual”, do “fazer por trás”, do laquê, e do ris quase infantil do pênis reto e explícito). A fotografia é um espetáculo à parte. É estilizada e uma estética a luz neon que cria outra imagem, como um ar de VHS para potencializar nossa experiência. “Ama tanto quanto o oceano que me rodeia”, diz-se e para o tempo.
O filme tenta ser propositalmente desajustado com seu humor pastelão sexual, principalmente pela interpretação de Gregório Duvivier, marido de Eurídice, que cada vez parece estar em uma esquete constrangedora do “Porta dos Fundos”. É também sobre ingenuidade, vulnerabilidade e crença inocente da vida, que se consolida na resposta realista e psicologicamente confusa, como a passionalidade do seguir marinheiros “canalhas”. “Que louco, estava sol e agora chovendo”, diz e retorna a sua condição de sempre anistia em si mesmo, como uma elipse em loop. Tudo aqui é um retrato de uma época do início dos anos cinquenta. De uma vida preconceituosa e limitada. De reações impulsivas, “esquentadas”, dramáticas e agressivas, “meio Shakespeare”, de uma família disfuncional e repetidora da massificação limitada de um retrógrado imaginário popular parado no tempo. É o sonho cada vez mais distante, engessada pela “sádica” interferência do Universo de fazer “criar uma criança na miséria”.
A narração lê as cartas e ambienta o espectador na dor suavizada da trama abordada. É libertário e transgressor, que, quando a pulsação do pensar diferente invoca o projetado resultado final, o simbolismo direto e concretista do “leite dele que respinga no do dela (amamentando – cadê o sonho?)” acha seu lugar na mais pura simplicidade. Suas personagens (as irmãs pelas atrizes Julia Stockler e Carol Duarte) não podem ser moralistas e éticas, até porque estão na batalha por suas sobrevivências diárias de um mundo cão que não descansa. Aborto ser crime ou pecado, tanto faz. “Ninguém precisa saber”. Eurídice representa a invisibilidade-serva de todas as mulheres, quando, por exemplo, em uma cena, ainda que sua irmã seja mãe solteira, para viajar é necessário ter a autorização do marido. É uma liberação (misógina) de propriedade. De perpetuar a máxima de sempre estar na condição de dona de casa.
“A Vida Invisível” é um melodrama com tempo de filme português. Com uma angústia abrasileirada e um romântico sofrimento universal. Um dos pontos altos é a maneira de viver espirituosa, perspicaz, honesta, verdadeira, defensiva e fielmente amigável da personagem Filomena, a Filó, interpretada pela irretocável Bárbara Santos. “Família não é sangue, é amor”, ensina dentro de um submundo do “lixo” em que o ser humano é a “pedra no sapato”. É sobre esquecimento, abandono, recomeço e a certeza de que o amor não acaba. Mesmo separado. Um filme pulsante de amor e verdade. De preencher silêncios. De respeitar e prezar nossas afinidades afetivas. Karim adentra no mundo mágico da possibilidade. E nós, sentimos poesia e sujeira transbordadas, e definitivamente, em redenção terapêutica, o acalentar da alma, sempre majestosamente interpretado por Fernanda Montenegro.