Um vício por outro
Por Fabricio Duque
Durante o Festival de Berlim 2018
Exibido no Festival de Berlim 2018, e agora no Festival do Rio do mesmo ano, “A Prece” é mais que um filme de cunho religioso, é um filme de transmutação sentimental. Que se conduz da raiva incontrolada de um adolescente perdido em mundo perdido a uma redenção da calma. Nosso protagonista galga os extremos do oito ao oitenta. Do desacreditar pragmático à crença incondicional e absoluta. A narrativa busca flertar com outras obras similares, como “O Estudante”, de Kirill Serebrennikov, e mais explicitamente com “De Cabeça Erguida”, de Emmanuelle Bercot, e principalmente com “As Ceifadeiras”, de Etienne Kallos.
Sua câmera sempre próxima (ora subjetiva) quer uma maior intimidade com seu público, o imergindo em um universo realista e sinestésico. Nós precisamos sentir a dor, a frustração, a raiva ininteligível e a revolta desconhecida para poder entender. Para aceitar os reais objetivos dos mistérios divinos. Esse jovem tenta personificar a emoção da transformação. “A Prece” representa o novo cinema francês, de fazer com que o espectador participe das ações e questione as reações. Sim, pode também ser considerado como uma liturgia de autoajuda em versão naturalista por confrontar os abstratos desígnios de Deus em um concretista estágio mundano cotidiano.
“A Prece” é um orgânico estudo de caso prisional de um adolescente que é obrigado a estar em uma reabilitação num moderno monastério (que mais parece uma “alienada seita”) “sem julgamentos” (e entendido pelos outros colegas que já passaram pela mesma situação) pelo uso descontrolado de drogas. Ele precisa ter sua cabeça raspada, passar pela abstinência do corpo tremendo (à moda de “O Diário de Um Adolescente”, de Scott Kalvert, com Leonardo DiCaprio), pela “coleira de cachorro”, sofrer com as dúvidas para aceitar a condição. É a parábola do maniqueísmo. Do mau elemento que encontra a verdade e a fé (nivelando-se a “Virgem Maria”).
Thomas (o ator Anthony Bajon, de “Rodin”) é viciado em drogas. Para dar um fim a esse hábito, ele participa de uma comunidade de ex-usuários que vivem isolados nas montanhas e usam a oração como uma forma de cura. Inicialmente relutante, Thomas aos poucos aceita se submeter a uma vida espartana de disciplina, trabalho árduo e orações frequentes. Ele descobre a fé, mas também o amor, e um novo tipo de tormento.
O longa-metragem é uma mensagem a favor do equilíbrio contra os pungentes e radicais atos. Por um “tratamento silencioso” pela altruísta solidariedade dos veteranos “profetas”. O tempo passa. Thomas sente integrado e quase naturalmente adaptado. Até a fotografia muda. Agora plástica e plácida da luz solar. Mas nosso protagonista não é nem um pouco sutil, e assim sua competição de ser sempre um vencedor vem mostrar outras crises e outros desafios existenciais. De transcender defesas imaturas para com a comunidade de “maníacos”, tudo pela força e intensidade da agressividade. É o querer da volta à zona de conforto.
“A Prece” é sobre a substituição de um vício a outro. Da incompletude de se conviver com o próprio eu. Da dependência em artifícios que anestesiam a alma. Da decadência moral à alienação das músicas e do teatro gospel. Do ateísmo à crença absoluta das palavras de Deus (que enaltece os cristãos). E da “força robusta do amor”. Do confronto com as “trevas do escuro”.
Cada vez o filme embarca mais no realismo teatral, e inevitavelmente, devido a seu tema, uma condução é forçada. Por discursos mais sentimentais, pelo clichê dos pais que não o visitam e pelo politicamente correto e moralista da fé (“Deus o curou”). Sim, mas essa “cura” é apresentada brusca demais. O “milagre” é muito rápido. Mas talvez esse também seja um propósito. De desnudar inocências e ingenuidades, como se tornar um carpinteiro. De levar a ferro e fogo os ensinamentos da Bíblia. De ser um “padre, um servo de Deus”. De ser passional demais. De elencar cafonices e gatilhos comuns referenciais à família e a bondade inquestionável.
Sim, Thomas continua um viciado em outra “distração” de passar o tempo da própria vida. Dirigido pelo francês Cédric Kahn (de “Vida Selvagem” de 2014, e que foi ator em “Guerra Fria”, de Pawel Pawlikowski e “A Economia do Amor”, de Joachim Lafosse), que também escreve o roteiro, “A Prece” é sobre redenção. Sobre um latente desespero que precisa se apegar a algo para não surtar. Nem que seja pela loucura coletiva da religião.