10 Segundos Para Vencer
Aos dez segundos
Por Fabricio Duque
Festival de Gramado 2018
Há uma estrutura quase padronizada quanto ao gênero da cinebiografia. A narrativa passeia entre a novela e a homenagem, obrigando que os atores assumam toda e irrestrita responsabilidade por suas interpretações. Sim, cada vez temos mais a certeza de que é uma obra exclusivamente daqueles que se entregam integralmente, livres a seus papéis, improvisando seus conhecimentos adquiridos pelo tempo e vivências. É quase sempre assim. Foi assim em “Elis”, de Hugo Prata; “Tim Maia”, de Mauro Lima; “2 Filhos de Francisco: A História de Zezé di Camargo & Luciano”, de Breno Silveira (que é um dos produtores); “Mais Forte que o Mundo”, de Afonso Poyart; e tantos outros.
No novo filme de José Alvarenga Jr. (de “Divã”, “Cilada.com”, “Os Normais – O Filme”, “Zoando na TV”, “A Princesa Xuxa e os Trapalhões”), “10 Segundos Para Vencer” não poderia ser diferente. Exibido na mostra competitiva do Festival de Cinema de Gramado deste ano, que premiou melhor ator para Osmar Prado, cuja vitória mais que merecida, visto pelo mergulho na personagem, sem a vaidade do criar, tampouco o medo do voltar à realidade. E que por sinal rouba a cena (como J. K. Simmons no filme “Whiplash: Em Busca da Perfeição”, de Damien Chazelle) do protagonista, o ator Daniel de Oliveira que encarna a existência de Eder Jofre.
“10 Segundos Para Vencer” conta a história do lutador conhecido como “Galinho de Ouro”, por ter sido eleito o maior peso galo do boxe mundial, de sua infância sofrida, no bairro do Peruche, em São Paulo, sua consagração em 1961, nos Estados Unidos, suas escolhas e seu retorno ao jogo. É um filme de superação dos limites: físicos, psicológicos, obrigados e aceitados como regra supersticiosa, cujas imposições sobre-humanas significaram o sucesso contra a covardia da preguiça (e do querer diversão). “Treino difícil, luta fácil”, ensina. “Boxe também é estudo”.
“10 Segundos Para Vencer”, baseado em uma história real, constrói uma fotografia saturada para recriar a misè-en-scene da época passada, e assim poder resgatar a credibilidade sensorial pela imagem, que apresenta um formal hibridismo, conjugando a velocidade da montagem em cortes rápidos (com o intuito de mostrar mais em pouco tempo – em estilo videoclipe) e o desenvolvimento da carga dramática do próprio tema (o aprofundamento emocional não tendencioso ao cliché sentimental). Todo e qualquer desejo é perigoso, se para aumentar ou diminuir. E todo e qualquer filme está pleno e intenso na mente de todo e qualquer diretor, o responsável absoluto pelo resultado fílmico, já dizia o cineasta-crítico François Truffaut.
Sim. Transpor ideias à tela grande é uma arte e requer uma dose drink de coragem, maestria, pretensão e humildade. Tudo junto e misturado. Quando se diz sobre “10 Segundos Para Vencer” ser híbrido, é por causa do afã de agradar a gregos e troianos fornecendo uma estética palatável e mastigada aos olhos óbvios com a liberdade da criação (de atravessar a superfície, mostrar a organicidade da cena e deixar a potência ser rasgada e ultrapassada da técnica). É um filme de dois lados que procuram o equilíbrio, conduzindo o público no limite tênue da representação ficção versus a nua e crua realidade, por períodos não lineares de 1946 a 1973 (identificadas pela mudança das palhetas das cores da fotografia de Lula Carvalho).
É sobre aqueles dez segundos da vida de um lutador, que espera a contagem para vencer. É a diferença entre “a fortuna e a miséria”. É sobre a presença do pai rude (obsessivo com o sucesso – técnicas radicais de ensinar na marra, como a briga arranjada na prisão e ou como obrigar a perder 2 gramas de cuspe e ou impedir até mesmo o pudim no dia do casamento de seu treinado), Kid Jofre (o premiado Osmar Prado), que com garra, força e com a crueldade (“treinamento, alimentação e dieta” – a loucura limite) alinha o caminho do filho (Daniel de Oliveira, com seu inocente e trincado sorriso canastrão) para se tornar o melhor, à moda mais desafiador da perfeição. Da impossibilidade do errar. Da persistência à superioridade. Da transcendência em mitigar a dúvida do perder e ser uma insensível máquina de competição. “Ganhe a luta amanhã que o cardápio mudará”, diz. Há algo de “Cisne Negro”, de Darren Aronofsky. Que critica a diversão do fanfarrão boêmio antes da luta. “Não é circo, é nosso sustento”, complementa.
“10 Segundos Para Vencer” é definitivamente uma experiência interpretativa. Imprime diálogos sagazes no do cuidadoso roteiro de Thomas Stavros, que elimina cacos e possíveis derradeiros gatilhos comuns, deixando seus atores confiantes e afiados para não encenarem, e sim, serem os próprios papéis. Deste lado, o alto nível da entrega em cena. Do outro, o tom novela com fotografia estilizada (com o sotaque paulista estereotipado e forçado; com a música sentimental que manipula a emoção; com a ingênua cena do rosto na bola azul; com o elemento facilitador do alfinete; com o discurso inflamado; e seus alívios explicados demais – as liberdades poéticas). É o elitizado versus o popular. A luta está no ringue-cinema mais próximo. Não é ruim, pelo contrário. Mas o filme provoca cada um dos lados. Isso é verdade. “No meio de gente burra, a liberdade não dura muito”, parte essa dita no próprio longa-metragem, que, independente de posições, envolve o público.
É um filme sobre vidas em pressa. Sobre futuros apressados. Que só enxerga no “chão” e não a possibilidade de “fazer outro”. “A América não vai sair de lá”, defende-se. Sobre não deixar passar uma provocação sem revidar. Sobre “boxeador ter um pouco de bailarino e saber esquivar”. Há um que de “Ali”, de Michael Mann, com “Rocky: Um Lutador”, de John G. Avildsen, com tantos outros pululando na imaginação de quem assiste. “Boxe é a luta do povo”, diz-se. É orgânico, físico, fisiológico, intercalando notícias de jornal e imagens de arquivo. Sua carreira coleciona 81 lutas, 75 vitórias, 50 nocautes, 4 empates e apenas duas derrotas.
“10 Segundos Para Vencer” é também um filme patriótico. De desmistificar o Brasil. De transformar preconceitos. De chacota de “selva” ao reconhecimento qualitativo. “Lutadores lutam, campeões vencem”. “Qual o propósito de ser campeão e não comer pudim?”, pergunta com raiva. Quanto mais caminha ao final, mais melodramático e mais auto-ajuda fica o filme. Com uma sucessão de mascaradas frases de efeito do “peso do cinturão”. “Campeão é alguém que cresce nos momentos de merda”. Ele, um “modelo de esperança” carrega o “fardo”, vive o conflito, dividido entre a paixão pelo esporte e a vida em família, e encontra a redenção fatalista de preencher os requisitos do bom filho. “10 Segundos Para Vencer” é um pêndulo. Entre o fracasso e o sucesso. Para agradar toda família, que por essência é tão diferente e plural. Nos dez segundos finais em uma briga por pontos. Assim como “Entre Irmãs”, de Breno Silveira, o filme também será lançado em formato de minissérie na Rede Globo.