Criaturas da Mente
Sonhar ou não sonhar, eis a questão!
Por Fabricio Duque
Assistido presencialmente no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro 2024
Marcelo Gomes é um cineasta que não para. Logo após lançar a ficção “mochileira” on the boat “Retrato de um Certo Oriente”, chega agora com “Criaturas da Mente”, documentário sobre a obra do neurocientista e escritor Sidarta Ribeiro, que estuda as profundezas-camadas do sonho, e que foi o filme escolhido para abrir a quinquagésima sétima edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro 2024. É, Marcelo explica que os lançamentos simultâneos das obras confluíram por causa da pós-pandemia. mas na verdade, talvez, seja mesmo porque ele se retroalimenta de cinema, aspirinas e alguns urubus, estes que agora podem ser transferidos à “descoberta” das “criaturas da mente”.
“Criaturas da Mente”, com roteiro também de Letícia Simões, é mais que um mergulho documental ao transcender a própria forma com a intimista estrutura de uma coloquialidade mais pessoal, como se fosse um auto-estudo “cobaia” de caso, pelo próprio Marcelo (que assume a função de narrador, para talvez criar a identificação com o público pelo processo de conhecimento do desconhecido, buscando assim respaldos científicos nas obras de Sidarta). O filme quer captar a metafísica, a partícula invisível do instante exato em que existe e o “fluxo constante de sonho” (este pela citação em tela de Orson Welles – e seu “Rosebud”). O longa-metragem quer também a tradução racional da psicodelia e da tradução das sinapses, entre inserções (e interferências) dos bastidores de “Retrato de um Certo Oriente”.
Tudo aqui em “Criaturas da Mente” deseja ser singular e com uma mise-en-scène propositalmente caseira, a fim de construir o sensorial, uma sinestesia com a comoção subjetiva da pandemia Covid-19, que era “proibido sentir o calor das pessoas”, no “meio de” sonhos com a “escadaria de Odessa”, do filme “O Encouraçado Potemkin” (1925), de Serguei Eisenstein. Tudo aqui busca também ser um misto de “cabeça vazia” e fusões de imagem, entre aprofundamentos da “arte de sonhar”, mandalas, vórtices, paradoxos, “o mar que leva ao transe”, o maracatu, e sobre a crônica de “um cineasta que não sonha” (“cadê o recado?”). Isto aqui é um cognitivo “tratado do sonhar”, numa câmera que beira o onírico (talvez pela forma do 16mm de corda).
“Criaturas da Mente” é um estudo do sonhar. Do que as pessoas sonham. Se lembram ou não. De que há “gente morando na gente”. O filme, por ser um processo vivo de descoberta, um on the mind, entre alecrim, experiência Jurema psicoativa Ayahuasca e “acordar a consciência”, permite que a narrativa, numa “gramática própria”, seja também mais ingênua, mais autoral, mais amadora, e que se possa incluir perguntas mais didáticas e mais redundantes; e principalmente desdobramentos consequentes de estágios alterados do ser enquanto reage aos efeitos do chá indígena. Nessa parte, a imagem simula o inconsciente, entre realidade convencional (cenas animadas) e fabular, à la o final de “2001 – Uma Odisseia no Espaço”, de Stanley Kubrick. Só que aqui, esse espaço é o próprio encontro com o eu.
Sendo sincero, tudo em “Criaturas da Mente” foi arquitetado por Marcelo para poder vivenciar emocionalmente, filmar e estudar sobre essa experiência de tomar a “flauta doce”. E embarcar numa “viagem” de “resgatar a ancestralidade”. Reativar os desejos e pulsões essenciais. Tudo aqui é uma “investigação do sonho”. Um filme que se “vende” que é sobre Sidarta Ribeiro (o “procurador da mente”), mas que o verdadeiro protagonista é mesmo a vontade primal de Marcelo Gomes, comportando-se como um “aluno curioso”, que pergunta “tudo ao professor”. É um filme que “abriu portas” a Marcelo de “acessar o subconsciente”, mas que no próprio filme, ele, o protagonista diretor diz que “não foi um boa ideia tomar o chá” e completa com um “Não tomem!”.
“Criaturas da Mente” é isso e quer se apresentar como uma obra despretensiosa, que acontece na ação, do primeiro impulso, no fluxo da vontade, e na reação, real e de efeito direto e imediato, que inclusive afeta o pensar e o sentir. Ao se desnudar e se expor, Marcelo concorda em ser uma cobaia de sua própria decisão. O longa-metragem é o que chamamos no cinema de projeto pessoal. Da necessidade latente, pulsante e não desistente de encontrar respostas a um problema, patológico e individual, que é compartilhado socialmente por meio de um câmera. Qual o final que o espectador tem disso tudo? Tomar (beber o chá) ou não, eis a questão? Ou assistir ao filme como uma experiência do outro, uma mentoria de análises de “certos e errados” pela vivência de uma pessoa? A decisão não mais está no diretor, agora é com sua audiência, os observadores-receptores até então passivos.