Corpus Christi
Fatores de Influência
Por Jorge Cruz
Quando os indicados ao Oscar 2020 foram anunciados, muitos se surpreenderam com a inclusão do representante da Polônia, “Corpus Christi” na lista. Segundo longa-metragem dirigido por Jan Komasa, saiu vencedor do Festival de Veneza 2019 no prêmio chamado Edipo Re Award – lembrando que o Leão de Ouro foi para “Coringa“. De certa forma, a temática exploratória dos dogmas relacionados aos sacerdotes da Igreja Católica, coloca o filme próximo a uma das obras mais subestimadas dos últimos anos, “Fé Corrompida”.
Seu prólogo nos apresenta Daniel (Bartosz Bielenia), um detento que descobre sua salvação na fé em Deus. Mesmo observando uma rotina de exploração laboral e violência física e sexual entre os internos, nada o abala em seu intento de se tornar um padre. Porém, quando ele cumpre sua dívida com a sociedade, descobre que seus antecedentes não o permitiriam entregar sua vida à instituição que aprendeu a admirar. Nesse ponto, o roteiro do jovem Mateusz Pacewicz já nos coloca em um dos grandes fantasmas que assombram o Catolicismo: a incapacidade de se adequar às novas demandas, de se adaptar ao novos tempos. Com apenas 27 anos, o autor se lança pela primeira vez em um longa-metragem, tendo como experiência apenas um curta-metragem chamado “Skwar“. Pacewicz não nos entregará um arco muito grande e nem mesmo explorará a complexidade das personalidades que ele insere em bons personagens. Mesmo assim, é notável uma criação tão eficiente em seu intento.
Por mais que Komasa tente transformar “Corpus Christi” em uma obra soturna, adicionando elementos de gênero quando um suspense sobre um fato que aconteceu na cidade é abordado, o que funciona, de fato, são as representações ancoradas na personagem de Bielenia. Seu Daniel, à revelia, começa a agir como se fosse um padre na tentativa de criar uma relação de poder onde ele está no comando. Após anos em um centro de detenção, em que a ausência de direitos é a regra, retornar à coletividade se entendendo como uma “pessoa inferior” pela famigerada ficha de antecedentes é algo cruel. Portanto, ao vislumbrar essa chance de impor uma autoridade como sacerdote – tão bem recebida em cidades pequenas – ele age sem titubear.
Não há uma exploração do tempo no filme como se observa no cinema europeu feito sob encomenda para os grandes festivais. Pelo contrário, a parte inicial (não necessariamente um primeiro ato) é sintética, fornecendo o que precisamos para seguir adiante. Boa parte da criação do texto vai no sentido de inserir personagens fundamentais e criar sequências que servirão de espelho para os momentos em que Daniel, como padre, não sabe como proceder. Ele repete sermões que já ouviu e aplica penitências sem qualquer sentido.
Há algo em “Corpus Christi” que dialoga muito com a contemporaneidade e esse algo é o protagonista. Além do desapego ás regras, ele possui como característica essa mitificação em torno de si. Como produto de seu tempo, Daniel entende que deverá rapidamente ser um “influenciador” dentro daquela comunidade. Portanto, não perde a oportunidade de conquistar novos adeptos de seu discurso – sendo parte importante se contrapor ao que, antes dele chegar, era dominante. A personagem é uma versão cinematográfica dos déspotas cada vez mais presentes na sociedade. O problema é que ele, à distância, aplica com muito mais razoabilidade os preceitos bíblicos. Sem precisar se comprometer com as amarras das convenções católicas, Daniel cria suas próprias convenções. Dentro de sua construção, ele entende que qualquer ser humano tem direito a um funeral digno, por exemplo. Ou seja, aquele que tem a chancela de Deus parece dizer que há algumas pessoas que devem permanecer condenadas por toda a eternidade. Algo que não teria a mesma força caso a Igreja aceitasse como padre pessoas como, vejam só, Daniel.
Essa “evolução” na construção se dá em alguns monólogos curtos, porém fortes. Ele vai entendendo seu lugar no mundo e como pode transformar suas limitações em um legado. Talvez a expectativa que venha a causar a indicação da obra ao lado de aparentes clássicos instantâneos como “Parasita“, “Honeyland” e “Dor e Glória” faça uma parte dos espectadores querer mais do que está ali. Até porque Komasa esquematiza o longa-metragem para que ele não materialize boa parte de suas intenções. É quase como se fosse uma experiência extra-corporal de Daniel, de duração limitada. Pelo visto, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas se arrependeu de não ter dado espaço para o debate, cada vez mais presente, da atuação dos padres católicos. A indicação de Paul Schrader pelo roteiro original de “Fé Corrompida” era a prova de que a produção estava no radar. Mesmo assim, ela foi solenemente ignorada em outras categorias.
Pacewicz e Komasa não conseguem o mesmo resultado em “Corpus Christi“. A obra agrada como estudo de caso e como leitura de personagem – enquanto Schrader consegue ampliar sua lente para a coletividade. É um longa-metragem menos poderoso e provavelmente bem menos visto do que o estrelado por Ethan Hawke. Mesmo assim, a lição que parece ser dada é: da mesma maneira que ser ordenado não torna um homem mais sábio do que aquele que não pode ser, ter uma grande estrela no elenco e ser um veterano da indústria cinematográfica não faz de sua obra mais relevante do que uma dupla de iniciantes poloneses.