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Coma

“Coma” ou a existência entre a vida e a morte numa gravura de Escher

Por João Lanari Bo

Coma

Vendo uma coisa de fora, considerando suas relações de ação e reação com outras coisas, ela aparece como matéria. Vendo-o de dentro, olhando para seu caráter imediato como sentimento, ele aparece como consciência (Charles Sander Peirce)

A Rússia de Putin emerge no cenário internacional cada vez mais desafiadora – há quem fale até de uma nova Guerra Fria opondo o poderio russo aos EUA, e por extensão, à Europa. Claro, há um óbvio exagero em tudo isso: a despeito do formidável arsenal nuclear que dispõe, a Rússia é um país limitado economicamente – e que sobrevive sobretudo graças às jazidas de petróleo e gás em seu imenso território (se o preço do petróleo cai, a economia e a política se fragilizam). A União Soviética e o bloco de nações sob sua influência não existem mais. Ao contrário da China – esta sim, um poderoso rival dos norte-americanos – a Rússia, mesmo com uma base científica extraordinária, não foi capaz de transformar esse acervo de descobertas e pesquisas em tecnologias rentáveis e competitivas. São várias as razões para um tal impasse, o passado soviético e a gestão da economia têm um papel central. No cinema, entretanto, o jogo é diferente: basta conferir, no cenário contemporâneo, a versatilidade da produção de ficção científica para se dar conta do poderio do imaginário russo. “Coma”, de Nikita Argunov, é um exemplo dessa capacidade, uma obra que conjuga sofisticação tecnológica das imagens com uma elaborada conceituação estético-filosófica, mesmo que destinadas ao entretenimento puro e simples (o filme está disponível no Telecine).

Assim, através de grandes e ambiciosas produções, a Rússia procura encontrar sua inserção na ordem global: os filmes sinalizam, pela via do simbólico, um desejo de recuperação do status de superpotência que o país ostentou ao longo do século 20. Em “Coma”, um jovem arquiteto, Victor, sofre um misterioso acidente, e acorda em um mundo estranho, criado pela mente de muitas pessoas em coma. Para voltar à realidade, tem de entender o que é realmente um estado de coma, que leis este novo e inédito espaço utiliza, e encontrar o sentido de sua existência para sobreviver no labirinto destrutivo das memórias das outras pessoas. Espaços criados por projeções mentais e memórias não são novidade: basta lembrar “Solaris”, de Andrei Tarkovski, baseado em livro homônimo do escritor polonês Stanislaw Lem, realizado na era Brejnev. Em “Coma”, o espaço desse mundo estranho assemelha-se aos espaços pensados pelo artista holandês M. C. Escher, em particular uma litogravura de 1953, “Relatividade” – um mundo no qual as leis “normais” da gravidade não se aplicam. Na gravura de Escher, a estrutura arquitetônica parece ser o centro de uma comunidade idílica, com a maioria de seus habitantes cuidando de seus negócios normais, como um jantar. Existem janelas e portas que conduzem a ambientes externos semelhantes a um parque. Uma série de escadas se cruzam em um interior semelhante a um labirinto: as escadas parecem ocupar um espaço ilusionista crível, mas após uma inspeção mais próxima, percebemos que se encontram em ângulos impossíveis. O que torna essa impressão tão hipnotizante é que Escher trata a curiosidade geométrica como ponto de partida para criar não apenas uma forma impossível, mas também um mundo impossível, com múltiplas e simultâneas orientações de gravidade. Todos os caminhos são para cima neste mundo encantador, mas também todos os caminhos são para baixo: a “realidade” muda completamente, dependendo de como o espectador olha. Escher combina os diferentes espaços na superfície plana de tal forma que a impossibilidade de sua convergência só se torne aparente em uma segunda ou terceira visualização – o artista considerou seu trabalho como um estudo sobre a “relatividade da função da superfície plana.”

A descrição é longa, mas útil para contextualizar a estratégia de criação de espaços cinematográficos em “Coma”, o filme de Argunov. Os personagens que transitam nesse espaço paralelo têm seus corpos mantidos em estado de coma no mundo da superfície, mais precisamente na sede de uma seita religiosa (um antigo hospital) na Rússia contemporânea, cuja máxima, estampada nos outdoor das estradas, é reveladora: há uma saída! Mas, no subterrâneo que habitam esses seres, as projeções mentais se organizam como sonhos, e o devir da vida flui em meio aos perigos e sobressaltos. Victor sofre da síndrome do “escolhido”, como nas tradicionais narrativas de ficção científica, e deve aprender a controlar suas habilidades, ou seja, seu inconsciente. À sua volta, entidades malignas obstruem sua redenção. Uma das questões tentadoras que transparece desse percurso é: a consciência ou alma humana de fato continua a existir além dos parâmetros tradicionais que definem a morte? Para Victor, parece não haver oposição binária entre o estado de coma inconsciente e o estado de vigília consciente. Assim como o sono tradicional tem vários estágios, existem diferentes estados cerebrais que a mente pode registrar enquanto está inconsciente e diferentes estados que o cérebro entra ao acordar. Estar em coma pode ser uma experiência radical de mudança – e certamente foi para Victor.

A necessidade de suprir o filme com legibilidade suficiente para permitir seu consumo em bases amplas acaba contaminando o resultado final, que peca um pouco pelo uso de convenções maniqueístas e redutoras. Mas a experiência de assistir “Coma”, à luz da sua complexa concepção, permanece estimulante. Curiosa foi também a experiência do lançamento do filme na China, em 2020. Precedido de uma popularização de trechos pirateados no TikTok – mais de 100 milhões de visualizações – os distribuidores chineses perceberam que, embora atraente, “Coma” deixou a desejar para a maioria dos espectadores, que não gostaram do “ritmo lento” da narrativa (foram mais de 20 mil comentários). Foi feita uma “adaptação” – com o consentimento dos produtores russos – que levou quatro meses, usou filmagens não utilizadas e mudou parte dos diálogos. A duração caiu de 111 para 95 minutos, e o título passou a ser “Super Espaço”.

3 Nota do Crítico 5 1

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