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Cicatrizes

Geometria da Dor

Por Adriano Monteiro

Cicatrizes

Ao assistir “Cicatrizes”, longa do diretor sérvio Miroslav Terzic, logo me chamou a atenção a rigidez e frieza das ações em exibição. O plano lateral inicial de alguns minutos de uma calçada, semelhante a planos memoráveis de “Uma Mulher Fantástica”, com a protagonista entrando em quadro de forma retilínea é o suficiente para perceber o ritmo quadrado da narrativa ao longo da projeção. Escolha feita de forma a implicitar a jornada cansativa da costureira Ana (Snezana Bogdanovic), que por dezoito anos viveu em busca do primeiro filho dito natimorto pelos médicos. Apesar de uma aparente reconstrução, as dores reaparecem constantemente e são ainda mais afloradas pelo caminho percorrido.

Por isso ser a proposta de título “Geometria da Dor”, por conta dessa capacidade do longa-metragem de colocar a protagonista em eterno caminhar objetivo, reto, nunca circular ou retrocedente. Destacado por um corpo duro em uma envelhecida Belgrado, favorecido pelas linhas e formas de seus planos. A estética parece propor a previsibilidade do “não” à uma mulher que já fez de tudo para encontrar seu filho, mas também uma rigidez na linguagem ao contar a história do amor materno, ou melhor, da dor materna. Da dor que muitas vezes não consegue se comunicar por palavras. Com isso, o “não dito” em “Cicatrizes, é um grande aliado contra a superficialidade das emoções, assim como o seu impressionante naturalismo, embasado pela trilha sonora sempre diegética.

Os gestos e movimentos parecem importar mais que a palavra. A protagonista não precisa de muito esforço para inferir seus sentimentos, assim como suas relações envoltas em um distanciamento doloroso. O bolo de aniversário de dezoito anos do filho natimorto, em uma das primeiras cenas do longa-metragem, confirma a potência do simbolismo na trama. Um roteiro autossuficiente, que passeia por uma decupagem geometricamente calculada, sem muitos exageros nos cortes, construindo um ritmo lento, que só não é entediante pela força de suas imagens. A obra parece responder a um tempo e espaço particular, se afastando do perigo dos folhetins melodramáticos de enredos semelhantes que poderia ter desaguado em um “Amor de Mãe” piorado (atual novela das 21 horas da Rede Globo) ou no tropical “A Vida Invisível”, de Karin Aïnouz, pelas semelhanças em explorar o “mito do amor materno”

A trama se desenvolve a partir do olhar de Ana. Sua eterna busca a coloca em situações constrangedoras perante a autoridades médicas e o próprio Estado. O contexto político do filme, embora não explorado, é o amanhecer da Guerra Civil Iugoslava que perdurou por 10 anos no período de 1991 a 2001. O roteiro é baseado nos relatos reais de Drinka Radonjic, costureira de Belgrado, parte de uma triste estatística de 500 famílias que tiveram sues filhos roubados no período pré-guerra civil. O governo e seus diversos braços são colocados em “Cicatrizes” como estrutura opressora, que omite, manipula e mina qualquer esperança de verdade dos fatos. As locações das instituições como a prefeitura, delegacia e hospital são enquadradas de forma a apequenar a personagem principal com suas paredes. Sua casa e local de trabalho são espaços pequenos, aconchegantes que servem de abrigo para uma cidade sem muitas cores, quase desértica, que fragiliza quem caminha pelas suas praças e vias.

A bem construída relação de conflito de Ana com sua filha Ivana (Jovana Stojiljkovic) é combustível para o ponto de virada principal da narrativa, em um belo exercício de compreensão entre mãe e filha, sem deixar banalizar os sentimentos complexos e contraditórios que tal relação envolve. A filha vai atrás do suposto filho perdido da mãe e a ajuda na dura tarefa do encontro. O que impressiona no longa é a escolha pelos caminhos menos óbvios: explorar a dor por um ponto de vista não só da personagem principal, mas em como afeta suas demais relações, num constante conflito interno e externo. É como se ela, a todo instante, tivesse que subtrair sua dor em nome dos outros.

“Cicatrizes” é a concessão de viver em nome do que se acredita, que se utiliza de uma técnica cinematográfica certeira, sem inventar a roda, mas que desnuda a psicologia de seus personagens em uma sociedade socialmente devastada. O resultado é o olhar sincero e honesto, exigidos pelo tema complexo da maternidade, sem cair nas tentações do comum. É uma interessante jornada feminina em busca da verdade, não só sobre seu filho, mas sobre si mesma, em gesto quase emancipatório.

4 Nota do Crítico 5 1

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