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Capitu e o Capítulo

Maria Capitolina Santiago

Por João Lanari Bo

Festival de Rotterdam 2021

Capitu e o Capítulo

Capitu e o Capítulo”, o longa de Júlio Bressane, de 2021, retoma a deglutição literária que o cineasta se dedica há tantos anos, nesse particular dando um mergulho raso numa das obras mais populares de Machado de Assis – “Dom Casmurro”, de 1899. Machado é a joia da coroa do nosso panteão literário: sua sobrevivência como autor instigante e atraente, dotado de uma ironia que se atualiza a todo tempo, é coisa rara numa tradição cultural como a brasileira. O filme capta essa vibração logo no título, uma boutade erudita que Bressane foi pegar em Haroldo de Campos, o poeta/tradutor que gostava dessas firulas retóricas. Capitu-capítulo já é um poema concreto, e ao mesmo tempo sinal inequívoco da própria estrutura do romance, duzentas e tantas páginas para cento e tantos capítulos: capítulos breves, suspiros romanescos, resultado – outra boutade literária – da epilepsia de Machado. A premissa é que a pena do escritor seria afetada pelo fôlego peculiar dos epilépticos, assim como os períodos longos de Proust seriam produto da asma (e não da alma) do genial escritor francês. A narrativa cinematográfica desta adaptação do clássico da literatura brasileira – ou distorção, como insiste o diretor – incorpora a estética epiléptica de solavancos e interrupções, eludindo do espectador a impressão de um desenrolar de ações, causa e efeito, plano e contraplano. Subversão de expectativas: chave recorrente na extensa e singular obra fílmica de Bressane, também coisa rara numa tradição cultural como a brasileira.

“Vou deitar ao papel as reminiscências que me vierem vindo. Deste modo, viverei o que vivi”, escreve Bentinho já maduro, para marcar logo de saída a narração em primeira pessoa desse livro que é deglutido diariamente por estudantes do ENEM – cultura popular, também. “Capitu e o Capítulo”, a despeito da estratégia narrativa que o coloca num plano sofisticado, ou melhor, experimental, quer crer-se popular: experiência mental, enfim. O narrador, no caso, é vivido pelo competente ator Enrique Diaz, que intercala suas memórias com digressões sobre poesia – os românticos brasileiros, mortos antes dos 25 anos, Álvares de Azevedo, Junqueira Freire, Casemiro de Abreu. Até Lima Barreto, crítico ambivalente do colega escritor, entra no sarau. Por um momento, estamos num cursinho de vestibular: manual acadêmico travestido de linguagem cinematográfica disruptiva. O livro de Machado é a sublimação psicanalítica do ciúme do narrador: o leitor/espectador ora põe em dúvida, ora acredita piamente, na inocência de Capitu, acusada de adultério pelo marido, ex-seminarista e advogado. No filme, essa sublimação transmuta-se em mise en cadre onde os atores expressam, pelo posicionamento e deslocamentos em relação à câmera, o estado emocional complexo que envolve um sentimento penoso provocado pela pessoa da qual se pretende o amor exclusivo – em uma palavra, o ciúme. A enunciação das palavras, naturalmente, carrega o páthos das situações, como nos filmes da dupla Straub/Huillet: mas o filme é mais do que teatro filmado, é teatro encapsulado, teatro molecular. Como disse um crítico, a “sensualidade vaporosa” do convite ao sexo, enunciada por Sancha (Djin Sganzerla, em excepcional atuação), aprofunda “o potencial de elaborações estritamente cinematográficas” e joga o filme numa materialidade irresistível. É como se o quarteto amoroso imaginado por Machado – Bentinho, Capitu, Escobar, Sancha – alçasse voo para um universo virtual e adentrasse numa casa de swing, imaginária, mas real.

Morena, olhos claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha a boca fina e o queixo largo. As mãos, a despeito de alguns ofícios rudes, eram curadas com amor; não cheirava a sabões finos nem águas de toucador, mas com água do poço e sabão comum trazia-as sem mácula.

Com essas palavras, Machado de Assis descreve, ou ainda, saboreia sua personagem, Capitu, (muito bem) encarnada pela global Mariana Ximenes, dotada de “olhos de cigana oblíqua e dissimulada” ou “olhos de ressaca”, segundo parecer do marido – influenciado pela opinião da mãe e do tio, que não queriam o casamento. Cenários de fundo infinito com pinturas romanas que remetem às casas (de prazeres?) de Pompéia dão aquele tom art déco tão caro ao diretor: e autocitações a la Godard da própria obra, o infalível “Matou a família e foi ao cinema” entre outros, compõem a linguagem sincopada, na falta de uma palavra melhor, de “Capitu e o Capítulo”. Mãos curadas com amor: a nota final de ironia é a coprodução da Globo Filmes, e, mais ainda, de Carlos Diegues. Depois de anos de hostilidades, cinema novo e cinema marginal dão-se as mãos, sob a égide da mega corporação midiática.

4 Nota do Crítico 5 1

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