Canção de Baal
Brecht e o Cinema
Por Fabricio Duque
Qualquer forma de adaptação é uma traição da forma original, independente da fidelidade com o material, essa transgressão e ruptura faz parte dessa breve, mas agressiva, transformação da linguagem. Particularmente as maiores quebras com relação direta à proposta original são as mais interessantes, pela falta de excesso de reverência aquilo que se trabalha.
“Canção de Baal” de Helena Ignêz é um meio termo peculiar de uma produção que busca adaptar algo, ao mesmo passo que compreende o texto original e o reverencia de forma literal em diversos momentos, reconhece os distanciamentos da linguagem cinematográfica com a teatral a partir da própria noção formal que implica a encenação ali apresentada. O que se concretiza em vulto imagético que parece buscar um delírio constante, se perde em uma entidade tupiniquim que atinge vulgarmente, de forma positiva, a interpretação daqueles momentos. Porém, se no papel a projeção soa frutífera, na prática se comprova o que já foi dito em outro texto no site, “Pão e Gente”, adaptação de Brecht e cinema é uma combinação volátil.
Não porque é inadaptável, mas porque a conceituação daquela esquemática cenográfica, social e política, é uma construção que se dá através de um olhar segmentado de um tempo específico e deve ser levado em consideração a problemática do espaço também. A cultura alemã e a brasileira possuem arestas que jamais serão capazes de se compreenderem. Logo, a não revisão de determinados paradigmas, dramáticos ou cenográficos, torna a obra pouco revigorante frente ao material original. Ainda que a direção de Helena seja capaz de distanciar a viralização da danação de Baal perante os outros personagens, transformando isso numa espécie de jogo que se inicia na própria ideia do filme, o projeto como um todo acaba sendo insuficiente para sustentar a ideia geral e acaba caindo na formalidade de reverenciar, não referenciar, a obra original.
Enquanto há um esforço, mais que relevante, de transformar toda a estética numa marginalização de cada vírgula que é proferida dos atores, além da proposta cênica que reverencia o Cinema Marginal Brasileiro, esse excesso de necessidade de exposição da obra de Brecht nos faz questionar a verdadeira pocilga que estamos vendo. A união dessa proposição alemã, com a brasileira, gera uma mistura pouco palatável para o espectador. E caso o resultado fosse favorável, estaríamos confundindo a própria cultura ali posta, mas no caso dessa mitologia ser construída a partir da verve marginal tupiniquim, tal como a língua, gera um concretismo quase ideológico de tudo.
“Canção de Baal” é uma espécie de espírito fragmentário, que está presente em Baal, em personificação desse ego de constância destrutiva que reconhece a deidade como um fardo lírico de encantamento geral, mas que em “Canção de Baal” acaba tornando a questão mais uma política de identidade para com a obra original e a recepção direta do espectador. A dialética desse processo é prejudicada pela falta de discernimento da podridão que tanto se eleva. O vaso é ovacionado, mas onde se projeta essa virilidade troncha a partir da brasilidade?
Helena é uma atriz genial, com uma carreira na direção bastante intensa, com projetos interessantes a partir de sua estrutura anárquica mas que reconhece seu ponto de partida e a discussão que pretende trazer, vide “Fakir”.
Reservo o trecho a partir do ponto para que haja um discernimento amplo entre o que escreve e o leitor. A visão acima é fruto de uma necessidade de reconhecer ali a figura que tanto persegue nosso cinema, o Brasil. Ainda que reconheça uma possibilidade de injustiça para com a obra, devo confessar, em primeira pessoa, que o filme em questão não me atingiu. E é importante abrir o diálogo neste instante, para que se curve a responsabilidade para uma balança que pode vir a pender à lados distintos de julgamento, comigo e com o longa. O parágrafo não se refere à uma mea culpa mas sim a uma relação pessoal que há entre o espectador ordinário (eu) e “Canção de Baal”.
Com os devidos pingos nos Is, reconhecer que o projeto encarna a proposta do Cinema Marginal é estabelecer uma troca direta entre a própria estética e a carga histórica do cinema brasileiro, um ode ao período. Mas que se separarmos em três momentos diferentes, a obra original, o Cinema Marginal e o momento em que ele é assistido, ou visto, esse câmbio pode se tornar mais burocrático que gostaríamos.