Campo
Humanidade Exposta
Por Jorge Cruz
Mostra de São Paulo 2019
Parece existir uma tendência no cinema português atual de questionar não só a razão da existência dos humanos como também a de costumes, tradições e instituições. O documentário “Campo”, do diretor Thiago Hespanha, une várias pontas desse pessimismo que toma conta da sociedade lusitana. Hespanha foi um dos produtores de “Ama-San”, que chegou com três anos de atraso aos cinemas brasileiros. Esse é o quarto documentário dirigido por esse arquiteto e será apresentado na programação Perspectiva Internacional da 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Todas as suas obras parecem dialogar com aspectos da cultura e territorialidade dos mais diferentes locais de Portugal e de São Tomé e Príncipe, o que talvez seja reflexo de sua formação acadêmica originária.
Um documentário que nos transporta para a maior base militar da Europa, o Campo de Tiro, em Alcochete. Há ali uma convivência interessante de humanos e outros seres, que permitiu uma abordagem fora da usual para produções do gênero. Longe de carregar as tintas do experimentalismo, a obra apenas não se pauta por didatismo ou anseia por matar a sede de informação a qualquer custo. Alternando narrações sobre a mitologia de Prometeu com imagens de treinamento de militares e pesquisadores da fauna local, o filme consegue aliar a proposta de nos apresentar o objeto documentado com um arsenal de imagens bem construídas, que se conectam no mesmo estruturalismo de funcionamento daquele próprio território.
O grande destaque de “Campo”, porém, é o design de som. Valorizando cada aspecto das cenas, capta de forma perfeito desde tiros de canhões até voo de abelhas. Há inserções na montagem, como frequência de rádios, que ambientam o espectador de forma a deixá-lo sempre conectado com as representações na tela. Há momentos inspirados na fotografia do longa-metragem, principalmente o lindo trabalho noturno com o uso de sombras dos militares em treinamento. Essa construção de imagens fortes, que funcionam quase de maneira autônoma, dialoga bastante com o documentário “No Interior do Alabama: A Vida em Hale County”, indicado ao Oscar na categoria em 2019. No campo da ficção, um filme nacional lançado há poucas semanas, “Ambiente Familiar” também o faz de forma impressionante.
Só que a pedra fundamental do filme é o questionamento acerca da necessidade da existência, dada a fugacidade de tudo o que nos cerca. O que começa com a narrativa sobre criação da humanidade por Prometeus, se transforma em um estudo semântico da palavra campo até chegar àquele ponto localizado às margens do Rio Tejo, o objeto do documentário. Ver a maior base militar da Europa em Portugal, com extensão territorial e economia distantes das grandes potências do continente, soa como uma ironia. Nesse ponto, o documentário vai fundo nas representações sobre a quase inutilidade de todo aquele aparato.
Apenas em um momento o filme não consegue fugir do documentário padronizado a partir de entrevistas. Acontece quando uma mãe e um filho, moradores de área próxima do campo, contam como sofrem com os barulhos de explosões e tiros. Nada que comprometa a coerência do longa-metragem, que em nenhum momento aposta em experimentalismos truncados ou maneirismos injustificados. Quando muda para a ciência e seu observatório das estrelas, fica ainda mais latente o questionamento sobre seus propósitos. Pode ser coincidência, mas a maneira como as produções portuguesas da Mostra São Paulo se apresentam reforçam a teoria de que os realizadores do país tentam alertar os locais sobre a importância da reação, sobre o quanto a autonomia e a identidade nacional precisam ser resgatadas.
Quando joga com a natureza, “Campo” produz grandes imagens, mesmo que tão tristes como o parto solitário de uma ovelha. A escolha do apicultor para representar as pesquisas de biólogos também não é por acaso. Em uma época onde se considera quase irreversível a extinção das abelhas, os humanos devem questionar se não há o risco de assistirmos ao fim da nossa espécie, dada a rapidez como a crise demográfica se alastrou no caso daqueles insetos. Vale ressaltar o momento em que é mostrado como o desenvolvimento de abelhas-robôs, criadas em laboratório para transferir o pólen na natureza, gerou uma nova arma de guerra.
Só que a parte final do documentário, tratando da astronomia, sai do regionalismo e amplia a visão para a totalidade dos humanos. Ao reforçar a dimensão de nossa insignificância em relação ao Universo e a certeza quase absoluta de que estamos sozinhos, “Campo” transmite, enfim, a sensação de que a humanidade gasta sua energia obtendo formas de destruir a si mesma.