Caminhos Cruzados
Vidas sociais em buscas atravessadas
Por Fabricio Duque
Festival de Berlim 2024
É preciso ter coragem para se decidir ir, para se abandonar o momento em que se está. Algumas pessoas não conseguem e se apegam às próprias frustrações e até mesmo à violência sofrida, que muitas das vezes viram ataques aos outros. Mas há um seleto grupo que vai. Que atravessa fronteiras para ter uma vida mais digna, longe de preconceitos enraizados e de tóxicas tradições retro-alimentadas. Esses seres partem em uma viagem à deriva, nos acasos e nos golpes de sorte do caminho. Exibido na mostra Panorama do Festival de Berlim 2024 (filme de abertura) e integrante oficial internacional do Olhar de Cinema de mesmo ano, “Caminhos Cruzados” que chega agora de forma online como um dos lançamentos da plataforma digital Mubi, após ter sido um sucesso de público nos cinemas brasileiros, é uma dessas obras que colocam suas personagens para aprender, redefinir propósitos e encerrar missões passadas. É um mundo que se abre, que não pede permissão para acontecer. Sim, é preciso ter coragem e estar preparado às reviravoltas.
Dirigido pelo cineasta sueco, de ascendência georgiana, Levan Akin (de “E Então Nós Dançamos”) quer conduzir o espectador pela busca. Pela perda do controle. Por meio de uma trajetória orgânica, intimista, de captação de instantes mais cotidianos, como o close dos rostos de seus transeuntes, como os gatos à espera de carinho, ainda que tudo seja uma ficção. Mas não necessariamente pelo encontrar. Aqui o mais importante é o que se constrói no meio. “Caminhos Cruzados”, que se inicia com uma explicação de que na língua turca e georgiana só há o gênero neuro (não há distinção e definições de o e a), traz a história de três personagens de gerações diferentes: uma senhora “refinada”, professora aposentada (acostumada com um mundo mais “fácil de traduzir”); um jovem vizinho (que aproveita a “oportunidade” para expandir geograficamente sua existência); e uma advogada transgênero (que luta diariamente para ser aceita em sua profissão – e é a que mais ajuda aos necessitados). Cada personagem expressa o que aprendeu. A revidar defensivas e desconfianças em respostas sinceras, quase cruéis (por medo, talvez). A entender que precisa ter paciência para o novo que está vindo (um jovem “exagerado” e ávido por vida nova indo explorar o mundo – mas que já viu quase tudo no Youtube). A de seguir acreditando exatamente no que está fazendo.
“Caminhos Cruzados” segue essas personagens em seus desejos por mudanças. A narrativa de cruzamentos, de atravessamentos (inclusive das imagens e dos espaços), de reviravoltas ocasionais (ainda que muito ajudadas pelo roteiro que enxerga um mundo mais ingênuo e ainda com espaço para a utopia da transformação), e de empatias transcendentes (que reconduzem a rota). Tudo isso se desenvolve especialmente pela câmera, que se está ali como personagem, olhando e criando percepções mais subjetivas (talvez pelo tempo maior em planos sequência de ambientação), encontrando focos pelo caminho, como o garoto que canta, junto de outra menina. O que é mostrado é um mundo cão “sob falsos pretextos”, de sobrevivência diária, contra inclusive a burocracia preconceituosa, mas dotado de esperança, perspectiva, futuro, de gente boa e comida compartilhada.
Sim, “Caminhos Cruzados” é uma fábula realista de buscas, desencontros existencialistas e questões sociais (de tradicionalismo histórico e estrutural, que preconiza a reputação familiar acima de todas as coisas), por uma “sinfonia urbana” (como definiu o próprio Mubi). Sim, quem busca não deseja apenas encontrar, mas rever tudo, com a “desculpa” de que é o único meio possível. É um autoengano para estimular. Para se ter coragem. “Parece que em Istambul, as pessoas vêm para desaparecer”, diz, entre uma típica trilha-sonora turca de músicas-lamento, que servem para conversar diretamente com Alá. É, como disse, “Caminhos Cruzados” traz essa aura de querer ser mais ingênuo, de criar conexões, simbolismos e afinidades mais caseiras (forçando até mesmo amizades construídas). E para que tudo seja mais encaixado, o roteiro precisa então ser mais facilitador em resolver pendências e soluções. Quando o diretor resolveu abordar diversas questões sociais, diversos tabus familiares, diversos estágios de lidar com identidade, perdão e redenção em quase cento e dez minutos, essa divisão de temas tivesse seus tempos de aprofundamento reduzidos. O final ambíguo, realidade ou projeção (isso realmente não importa), numa liberdade metafísica e poética, faz com que “Caminhos Cruzados” ganhe infinitas chances e novas promessas, acabando com o próprio conceito de possibilidade. Ali, naquele momento, a personagem encontrou o que procurava.